Pode, é claro, ter a ver com uma percepção pessoal das coisas, idiossincrática e mais ou menos passageira, sem grande correspondência com a realidade. É uma hipótese que não pode nunca ser completamente descartada. Mas, francamente, não me parece que seja isso. O que me parece mesmo é que as vozes que se ouvem à nossa volta, o que elas dizem, a maneira como o dizem, e a maneira de pensar que revelam, mostram, no seu conjunto, que vivemos tempos em que a saúde intelectual é um bem escasso e praticamente sem eco público. Em contrapartida, o triunfo do aproximativo, do alusivo, do falsamente significativo e do histrionismo das convicções encenadas tornou-se a moeda corrente do debate público.

Foi sempre assim? Parcialmente, talvez. Mas nunca com o grau de intensidade que hoje em dia se vê e que quase obriga, mal se liga a televisão, a desligá-la e a procurar refúgio em actividades mais salubres. As maneiras de pensar correntes, qualquer que seja o objecto em que incidam, transmitem imediatamente, e quase sem excepção, o odor enjoativo e malsão da estupidez, da inconsciência e da desonestidade e barram o caminho a qualquer uso, por precário que seja, da racionalidade  e da boa fé. Se não nos armarmos com um arsenal de prudências  de toda a espécie, o efeito arrisca-se a ser letal. Em parte por causa disto, apanhei-me no outro dia a fazer uma pequena lista de algumas maneiras de pensar que contribuem decisivamente para essa atmosfera. A lista, é claro, está longe de ser exaustiva e pode muito bem acontecer que os elementos que a constituem não tenham entre si qualquer relação interna muito forte, embora o meu sentimento seja exactamente o contrário: o de que eles formam um magma que retrata algo de essencial ao tempo presente. Seja assim ou não, ofereço alguns exemplos que ficam por uma descrição geral, sem grande preocupação de ilustrações concretas. Se os exemplos são bons e pertinentes, não custará a quem me ler encontrar factos que que lhes correspondam com maior ou menor acerto.

Comecemos pelo corrente uso imoderado das analogias históricas. É verdade que todo o pensamento, em qualquer domínio que seja, a começar pelos aspectos aparentemente mais insignificantes da nossa vida quotidiana, requer uma atenção simultânea às semelhanças e às diferenças. E é verdade também que os indivíduos, incluindo grandes espíritos das ciências, manifestam uma habilidade particular para uma atitude ou outra. Há um génio particular em detectar analogias entre fenómenos aparentemente díspares, tal como há uma virtude indisputável em descobrir o irredutivelmente singular em certos acontecimentos. A história é, naturalmente, um terreno de eleição para o exercício de um talento e de outro. O problema aparece quando uma qualquer das duas atitudes ganha uma preponderância absoluta sobre a outra ao ponto de não ser sequer necessário justificá-la. Ora, nos nossos dias é o uso imoderado das analogias que prevalece. A acreditar na sabedoria mediática, apoiada na doutrina partilhada por um vasto número de pensadores mais ou menos subtis, estaremos nos nossos dias a viver as condições singularmente trágicas dos anos trinta do século passado. Explora-se tudo o que possa exorbitar as semelhanças, elide-se sem hesitação aquilo que possa apontar para as diferenças. O resultado, como não poderia deixar de ser, é uma versão distorcida da realidade. Que ela resulte de má-fé ideológica ou de pura e simples preguiça de pensar, é indiferente. O que importa é que a maneira de pensar dominante funciona como um obstáculo poderoso ao exercício da nossa capacidade de pensar o mundo que nos rodeia.

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