Poderia dizer que esta foi uma semana crítica. Ou mesmo apolítica. Mas toda a mentira tem um senão: quando se a vê ao perto, tem um rasgão. A verdade é que vi o meu primeiro amor, de raspão. Já não era meu. Tão pouco era amor. Mas nada é melhor à beira do Verão do que ver de raspão a lembrança do primeiro amor. Então…

O meu primeiro amor foi tudo quanto um primeiro amor deve ser, mas naquela altura eu não sabia nada de amor. Já o meu coração devia saber a potes porque só de ver o primeiro amor, punha-se a pular do peito para a garganta, da garganta para o peito, um elevador desgovernado, parecia que o coitado queria falar – e eu só o queria calar. Que nervos passei com o primeiro amor a fazer-me de nonchalant para compensar o desatino cardio-elevatório! Desde a primeira hora, no primeiro dia. «Pode dar-me lume, por favor?» Não queria dizer «não fumo» para não parecer bebé: «não tenho isqueiro.» Ofereceu-me um cigarro: «não, muito obrigada». E zás. Passa-me o isqueiro para a mão. Acendi-lhe o cigarro. Foi assim. Bem, quase. Depois acompanhou-me e à minha amiga parte do caminho e, de repente, à frente da gelataria, atirou a carteira dele para dentro do meu saco e, num segundo, desatou a fugir, e gritou já longe, «amanhã, aqui, às três, preciso dos documentos.»

Fiquei petrificada. Nunca tinha visto nem ouvido nem sabido de ninguém assim. Fiz planos de lhe dizer poucas e boas no dia a seguir. Ao que parece os planos estavam a mentir.

Quando o primeiro amor me dava a mão, dava-me logo o céu inteiro e só quem nunca deu a mão ao primeiro amor é que pensa que andar nas nuvens é cliché ou metáfora. Eu andava com o primeiro amor, o primeiro amor andava comigo porque aos dezasseis anos namorar era andar, e nós andávamos de facto: fazíamos quilómetros nós, os dezassete anos do primeiro amor e os meus dezasseis, a baixa toda para cima e para baixo, do alto ao jardim, tanta piscina, meu Deus. Só de mão dada que coragem para o primeiro beijo no primeiro amor, nada.

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Os dezassete anos do meu primeiro amor eram tão giros que eu nem sabia do que havia de gostar mais. Tinha um cabelo muito fino e farto, acinzentado escuro de ter sido louro em pequenino e ainda ser loiro claríssimo na raiz do cabelo sempre despenteado e muito bem cortado, nas sobrancelhas, nas pestanas atrás dos óculos de lentes grossas bem disfarçadas, os olhos ficavam pequeninos e cresciam como os do lobo mau se os tirava para os limpar. Gostava dos olhos, do olhar e dos óculos do primeiro amor: os aros fininhos, cor de prata ou de lata baça, nem sei, se vistos perto, pertinho à distância dos beijos que depois nos fartámos de dar, eram todos gravados em finíssimos arabescos, se estilizados ou vegetalistas, não posso dizer, o que sei é que ao perto até deixava de ver. Era uma tontura que a falta de distância me dava, e nem o ar me chegava se ele me abraçava. E ele abraçava tão bem, beijos tão bons, que só me apetecia fechar os olhos e cair. Enfim, fechava os olhos. O primeiro amor andava sempre em braços mesmo com um frio de rachar, as mangas das camisas dobradas. Tinha uns braços fortes, bem desenhados, tinha força e estava-se lá tão bem: abraçados e de mãos dadas, apertadas, que exagero perfeito de primeiro amor – não apetecia largar.

O meu primeiro amor sabia tudo de filosofia e de literatura, e eu aprendia com o meu primeiro amor. Ele até gostava de Eça, sabia Eça e uma coisa dessas é boa quase demais. E quando falava, sorria um sorriso, às vezes até ao riso. O meu primeiro amor era expressivo e tinha um humor corrosivo. Fazia-me rir. Usava calças de ganga. Sempre. E que bem que cabeça lhe assentava no pescoço, o tronco lhe assentava nas pernas, e aquele andar calculadamente descontraído tinha um nervoso escondido – que alegria era vê-lo a caminhar na minha direcção.

O meu primeiro amor e eu fazíamos esplanada, nem que fôssemos os únicos na sibéria gelada. Ele pedia uma bica e como gostava daqueles beijos com sabor a café, comecei a beber café também. Nunca mais parei de o beber.

Um fim de tarde, já era de noite, íamos de mão dada, ele ia levar-me à porta de casa. Foi então que o primeiro amor e eu tivemos uma mínima discussão: o primeiro amor tinha o vício do rigor e da exactidão e eu disse uma patetice, por distracção, chamei Camilo ao Eça do Primo Basílio. E ele fez pouco de mim, era um tonto nestas coisas assim de ser dono da verdade e ter a última palavra – era importante para ele e eu não me importava mesmo nada.

Mas foi nessa altura que me disse a coisa mais bonita que um primeiro amor poderá alguma vez dizer, ainda por cima era verdade, pensou que ia morrer. O meu primeiro amor fumava – cheguei a contar? De repente, calmo, mas de olhar muito aberto directamente no meu, pára, põe a mão no peito, a outra mão sempre na minha mão:
– Gosto tanto de ti que acho que vou ter um ataque de coração.
Os fósforos no bolso da camisa onde estavam também os cigarros tinham pegado fogo. Depois do susto riu-se tanto do incêndio que o riso ainda hoje me ilumina.

Acabou porque tinha de acabar, porque era bom demais para durar. Fartei-me de chorar por causa deste primeiro amor. Ninguém teve um primeiro amor mais amor do que eu.

A autora escreve segundo a antiga ortografia