Sophia nasceu há cem anos e começa hoje mesmo o ano que celebra a sua vida e a sua obra solar, intemporal e universal.

“No Centenário do seu nascimento, comemorar Sophia é comemorá-la, lembrá-la em comum. E é celebrar essa funda e desassombrada exaltação da vida, essa aguda e universal consciência do mundo de que a sua poesia dá testemunho para sempre”, lê-se no Manifesto da Comissão das Comemorações do Centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen.

A Comissão tem sede no Centro Nacional de Cultura, lugar a que sempre esteve ligada e era como uma outra casa de Sophia, onde passou longos dias e infindáveis noites em tertúlias e conversas resistentes com autores e escritores, políticos e historiadores, entre tantos outros pensadores, muitos deles grandes amigos, porventura os melhores que fez em vida, com quem viajou para muito longe no sentido literal e metafórico.

Maria Andresen de Sousa Tavares, filha de Sophia, Guilherme d’Oliveira Martins, um destes seus grandes amigos, Federico Bertolazzi, Fernando Cabral Martins e José Manuel dos Santos são a Comissão Coordenadora do Centenário, mas a lista de intelectuais, autores e artistas que se juntaram para esta justa celebração, por reconhecerem em Sophia “uma grande poeta e uma exemplar figura moral, cívica e cultural, que nos inspira e desperta, desafia e renova” é vasta, abrangente e eloquente da universalidade de Sophia.

Richard Zenith, Margarida Gil e Frederico Lourenço são apenas alguns dos membros desta Comissão Organizadora que se empenhou de alma e coração para que este seja um ano especial para todos, com um programa que “é tributo e evocação, comunicação e divulgação, revelação e conhecimento de uma personalidade única, de uma vida intensa e de uma obra excecional, que é contemporânea do presente e continuará a sê-lo do futuro”.

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Leio tudo o que agora começa a ser escrito sobre Sophia e lembro-me dela em casa, porque tive a felicidade de a conhecer e ser família durante 17 anos. E ouço o eco da sua voz, escuto os seus passos curtos e firmes no corredor, sinto a sua presença pelo cheiro do seu perfume, e contemplo, como já contemplava na sua presença, as suas mãos de dedos compridos e finos, muito elegantes, com o seu anel de três pedras encarnadas-escuras, propositadamente largo para lhe dançar no dedo.

Volto em pensamento a esses tempos. Consigo ouvir o rumor vegetal dos ciprestes do seu jardim, atravessados pelo vento quente das tardes de Verão e vejo-a sentada na sala, na sua mesa de escrever encostada à janela, a janela da fotografia que muitos conhecem, a pensar e a fumar demoradamente, bebendo um chá que vai esfriando. Também a vejo caminhar em silêncio ou a andar muito depressa, com passos sincopados, quando estava atrasada e era preciso chegar a horas a algum lugar.

Guardo memórias antigas que permanecem frescas e nítidas como se tivéssemos estado juntas esta manhã. Uma vez resgatou a vida e a esperança de alguém muito querido da nossa família, com um telefonema certeiro para o único médico que podia chegar a horas de o salvar. E salvou. Meses mais tarde, quando lhe quisemos agradecer o gesto num jantar em que, finalmente, estávamos todos outra vez sentados à volta da mesa, inteiramente recuperados, ela sorriu e encolheu ligeiramente os ombros com pudor. Como se não tivesse feito nada de especial.

Nessa noite, à saída do jantar, atravessou o longo corredor de madeira com uma braçada enorme de tulipas encarnadas que lhe oferecemos. Imagem linda, inesquecível. Parecia uma diva. Belíssima, elegantíssima, levíssima, alegríssima.

Recordo um fim de tarde, sozinhas no Partenon, depois de outro dia de muito calor. Todos os que subiram connosco, desceram à cidade sem se darem conta de que não íamos com eles. Era uma comitiva presidencial, eu era jornalista e Sophia convidada de Mário Soares. José de Azeredo Perdigão também estava no grupo e visitava pela primeira vez na vida o Partenon, amparado no braço de sua mulher. Quando o grupo dispersou não ficou absolutamente ninguém a passear entre as ruinas do templo. Misteriosamente todos desapareceram no horizonte e ficamos apenas as duas.

Sentamo-nos nas pedras ainda quentes para ficar a conversar, mas na verdade não chegou a haver diálogo. Parecia que Sophia sabia tudo sobre todas as figuras da antiguidade clássica e falava de cada estátua, de cada vida, como se fossem a sua própria vida. E eram. Lembro-me de ter fechado os olhos para a ouvir melhor e memorizar mais. Queria eternizar o momento e acho que consegui. Não me lembro das suas palavras, mas sei de cor o eco que tiveram em mim.

Tudo em Sophia era único e irrepetível. Faziam-lhe imensas perguntas, mas para tudo tinha uma resposta de maravilha. Tanto podia usar palavras simples e luminosas, como ser completamente abstrata e indecifrável. Depende se gostava ou não do tom e das pessoas que lhe faziam essas mesmas perguntas. Ria sozinha. De si e para consigo. Depois fazia-se ausente e como que deixava o mundo comum dos mortais, voando, elevando-se através de um silêncio muito profundo, altivo e sonhador.

A Sophia que eu conhecia era muito terna e muito atenta aos detalhes dos que amava e tinha à sua volta. Uns por viverem com ela em casa, outros por morarem no seu coração. Nunca a vi ser como as outras pessoas, apesar de viver entre elas. Distraída, podia passar por indelicada ou impaciente quando chegava a uma loja e avançava para o balcão com o seu pedido, mesmo havendo uma fila de gente à espera. Não fazia por mal, simplesmente vivia no mundo dela, onde não havia horas nem rotinas para além de pensar, escrever, fumar, tomar chá, ficar em silêncio, cozinhar e conversar.

Cozinhava maravilhosamente. Tudo o que fazia era temperado, perfumado, com ervas e cheiros sublimes. Penso que a sua cozinha era como a sua escrita: depurada e aparentemente simples, mas rigorosa, sumptuosa. Admirável. Jamais frívola.

Começa hoje o ano de Sophia, o ano em que voltaremos a vê-la em filmes e documentários, em que a ouviremos falar e a ouviremos dizer os seus poemas. Este ano será um ano feliz de visitação e revisitação. À sua escrita, à sua casa e ao seu jardim no Porto.

Tudo na casa era desmedidamente grande desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual, como Hans dizia, se poderia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava, empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências por não haver lugar onde coubesse armado“.
in “Saga” de Histórias da Terra e do Mar. 

Deixei as minhas memórias para viajar até ao Porto, onde as homenagens a Sophia se sucederão na Galeria da Biodiversidade e do Museu da História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, na casa de família onde está agora o esqueleto de baleia que Sophia imortalizou. E transcrevo o imperativo inaugural deste ano de Sophia, ao qual os organizadores destas iniciativas a norte deram o nome de Jardim de Sophia:

“Torna-se assim imperativo começar esta viagem de celebração do centenário de Sophia contando um pouco do muito que representa este espaço. Um lugar que também se chamou Quinta do Campo Alegre ou Casa Andresen, e cuja história remonta ao início do século XIX e se mistura com as raízes da família Andresen, quando João Henrique Andresen Júnior, avô da escritora, a adquire em 1895. 

Chamamos a este espaço “Jardim de Sophia”, não nos podendo esquecer da importância da sua envolvência, hoje Jardim Botânico do Porto, onde o culto pela botânica e pela própria beleza tanto têm significado para a cidade do Porto.

Celebraremos também outros habitantes deste lugar, como o escritor Ruben A. e a Galeria da Biodiversidade, cujo brilho e dinâmica vieram dar nova vida ao Jardim de Sophia”.