No sistema de governação americano, suportado por um dos pilares da Constituição, existe o princípio dos “pesos e contrapesos” (checks and balances no original), que distribui poderes e responsabilidades pelo aparelho executivo, legislativo e judicial. Uma lei passada pelo Congresso pode ser vetada pelo Presidente, ou uma ação executiva do Presidente pode ser considerada como inconstitucional pelo Supremo Tribunal. Por sua vez, o processo de oposição política ao Presidente é, normalmente, da responsabilidade dos líderes na Casa dos Representantes e no Senado do partido que não detém a Casa Branca. Se esses líderes tiverem a maioria numa ou nas duas câmaras, então a capacidade negocial do partido na oposição é fortemente aumentada, podendo, inclusive, tornar muito difícil a obtenção de objetivos eleitorais por parte do Presidente. Até mesmo durante a campanha para a nomeação de um candidato à presidência, a existência de múltiplos pretendentes não atribui a nenhum deles a posição de ser o porta-voz do partido. Isso acontecerá após o final das eleições primárias e da aceitação da nomeação durante a convenção do respetivo partido.

A ideia de existir um “governo sombra” não é algo que faz parte da tradição política nos Estados Unidos, ao contrário, por exemplo, do país do qual a América se emancipou em 1783. No Reino Unido, e replicado na Nova Zelândia e no Canadá, existem “ministros-sombra”, que sob a liderança do líder da oposição escrutinam a ação governamental e, quando possível, apresentam alternativas políticas. Existem comissões bipartidárias em Washington onde essas discussões acontecem e leis propostas para aprovação podem ser alvo de um debate mais alargado tanto na câmara do Senado como na Casa dos Representantes. No entanto, podemos, a partir de 2021, ter pela primeira vez um “Presidente Sombra”. De acordo com notícias recentes, e tendo como fontes pessoas próximas do presidente cessante, Donald J. Trump poderá, não só estar a preparar-se para entrar na corrida para a nomeação para a presidência pelos Republicanos, em 2024, como está a pensar em realizar um evento para anunciar essa intenção no mesmo dia da tomada de posse de Joseph Biden como o 46º POTUS. As mesmas fontes afirmam que já estão a ser realizados os primeiros contactos com doadores milionários da ala conservadora, com o objetivo de avaliar quais aqueles que se manterão disponíveis para continuar a financiar a campanha.

Depois da declaração (prematura) da vitória eleitoral, da tentativa de virar os resultados através de processos judiciais, até à impensável afronta democrática de forçar membros do Partido Republicano a subverter a vontade popular, com estes últimos a colocar como hipótese a nomeação de delegados para o Colégio Eleitoral fiéis ao Presidente, a opção que resta a Trump é tentar criar o máximo possível de obstáculos à governação Biden-Harris.  Isso é possível com a ajuda do Partido Republicano que continua, aparentemente, refém da capacidade de Trump em mobilizar a sua larga base de apoio. Igualmente, ele pode contar com o apoio incondicional de órgãos de comunicação social, como os canais televisivos OANN e Newsmax, com a ajuda declarada da FOX-News e de sites de publicações e jornais de cariz conservador, desde o Wall Street Journal até ao Breitbart, passando pelo New York Post.

Para Trump, estão reunidas as condições para continuar a fazer algo que lhe é fácil: criar dissensão e insatisfação nos seus seguidores, que são, ao mesmo tempo, a base de votantes do Partido Republicano. Ao mesmo tempo, Trump pode continuar a oferecer a promessa do “retorno à grandeza” da sua presidência, numa espécie de “Make America Great Again like it was in 2019”, onde ele é, e como o diz vezes sem conta, “o único que pode resolver as coisas”. A pandemia está a ser controlada? Isso foi porque a vacina foi desenvolvida sob a sua Administração. A economia está estagnada? Isso é porque Biden não é um “negociador” como ele é. Os Estados Unidos voltaram às alianças e acordos internacionais? Isso é porque os democratas não zelam, em primeiro lugar, pelos interesses dos Americanos.

A questão mais importante é saber se esta estratégia é sustentável a longo prazo. Ao mesmo tempo, a ambição de alguns dos senadores republicanos, em serem eles próprios candidatos à presidência, poderá causar uma cisão na base de apoio. E, por outro lado, estas “intenções” podem ser, simplesmente, mais uma forma de Trump extrair o máximo possível de dinheiro a doadores e seguidores. Ou até pode ser que, desta forma, se confirme que o ex-presidente tem mais vocação para ser um troll democrático do que um verdadeiro político com reais aspirações políticas e governativas.

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