É difícil encontrar um português que seja contra a igualdade de oportunidades independentemente da raça, etnia, estatuto social, sexo, orientação sexual ou religião, assim como é difícil encontrar um português que possa afirmar que nunca foram cometidas injustiças na obtenção de emprego, no crédito à habitação, na distribuição de alunos por turmas, por exemplo, com base naquelas características.

É inegável, também, que, no que toca a ações e atitudes quotidianas de racismo e xenofobia, estamos muito melhor do que estávamos há apenas algumas décadas. E, no entanto, nunca como antes nos quiseram fazer crer com tanta veemência que não podíamos estar pior.

Tome-se como exemplo a carta aberta dos escritores de língua portuguesa, publicada no jornal Público a 18 de agosto e assinada por 187 escritores. Nela, os signatários instigam-nos a todos a acordar para uma realidade de gravidade máxima, que tem de ser combatida pois está a conduzir à privação de todos os direitos fundamentais. Que realidade? A carta nunca designa factos, pessoas ou movimentos, porque, explicam os signatários, não querem dar palco àquilo que é obsceno. Como nunca dizem que coisa ou facto é que é obsceno, falam através de construções indefinidas e englobantes (“tudo o que…”; “todos esses…”) e de uma coleção sortida de qualificadores (“graves”, “inquietantes”, “repugnante”, “insidioso”, “primitivos”, “retrógrados”, “obscurantistas”, “destrutivos”, “abjectos”, “irreparável”, “sufocantes”, “terrível”). Todos os termos decorrem de um juízo – o deles – confiando, e ao mesmo tempo impondo, que as pessoas de boa fé – como eles –, sabem perfeitamente de que ações eles estão a falar quando dizem: “insidioso ataque à democracia…” ou “ameaças que ora rastejam…”.

Se os autores optassem por designar o nome de pessoas, projetos ou movimentos que motivam a sua condenação sumária e estridente, isso implicava que teriam de apresentar os factos que justificam essa avaliação e condenação. Implicava também que teriam de deixar ao leitor a possibilidade não só de ir confirmar os factos, mas também de ajuizar por ele próprio o grau de rigor com que a realidade lhes está a ser caracterizada.

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Por exemplo, quando os escritores dizem “a escalada de violência e da xenofobia”, o leitor pergunta, genuinamente, o que é que tem recorrentemente acontecido em Portugal que permita dar como consabido que há uma escalada de violência e xenofobia.

Pensa então nas mortes que, desde dezembro do ano passado, envolveram pessoas de diferentes origens: Luís Giovani Rodrigues, assassinado por 8 brancos; Pedro Fonseca, assassinado por 3 negros; Ihor Homenyuk, cidadão ucraniano, espancado até à morte nas instalações do SEF; Bruno Candé, assassinado por um homem branco de 76 anos. Porém, o único caso cuja investigação policial está a levar em conta a motivação racial é o do assassinato de Bruno Candé. Que este crime tivesse sido instigado por “demagogias, teses anti-imigração, racismos, e extremas-direitas” ou “projetos e movimentos antidemocráticos” é que é difícil de crer quando lemos no Expresso que o assassino é um ex-combatente do Ultramar que costumava ameaçar os vizinhos de Moscavide com uma velha bengala.

Que escalada, então? No texto da carta não encontramos nada. Só no hipertexto. O Público, na frase “face às circunstâncias vividas em Portugal” insere uma hiperligação para uma notícia. A notícia é sobre a ameaça enviada por e-mail ao SOS Racismo e membros do Parlamento, no total de 3 deputadas e 7 ativistas, referindo também a concentração, uns dias antes, de 20 pessoas com máscaras e tochas à porta do SOS Racismo. O e-mail vinha assinado pela Nova Ordem de Avis e pela Resistência Nacional, movimentos de extrema-direita criados em julho. Segundo a Sábado, é provável que o primeiro movimento não exista.

Chegamos então à revelação. É uma “escalada” porque há mais do que uma ocorrência – na verdade, duas. E é uma escalada “de violência e xenofobia” porque as duas ocorrências visam o SOS Racismo e 3 deputadas. Assume-se que os elementos do SOS Racismo e as 3 deputadas consubstanciam, em osmose, todos os milhares de africanos em Portugal que assim são tomados como fazendo parte de um grande grupo identitário de indivíduos, indiferenciados nas suas opiniões, aspirações, vivências e visões do mundo.

E não é uma escalada qualquer. É uma escalada que já atingiu o ponto de saturação máximo quanto a abusos de todos os direitos democráticos. Mais um passo e rebolamos pelo declive da ditadura. Portanto, “temos de reagir antes que seja tarde”, pois “o fascismo não passará”.

Deste modo, dizem os escritores de língua portuguesa que não podem “continuar calados, sob pena de emudecermos”. Para isso, vão “usar as palavras” pois, “por ofício” estão cientes do seu poder.

Pois estão. As palavras que usam, alinhadas num grande rol indiferenciado de conceitos, são palavras não apenas de significação genérica, mas que carregam um valor moral perentório, inquestionável, não negociável. Os signatários lutam contra o “racismo, populismo, xenofobia, homofobia”. Lutam contra “o ataque à democracia, ao multiculturalismo, à justiça social, à tolerância, à inclusão, à igualdade entre géneros…”, enfim, contra “demagogias, teses anti-imigração, racismos…”. Todos estes termos são termos-tampão. Se uma pessoa mostrar ter alguma dúvida sobre o significado de alguma destas palavras ou sobre as circunstâncias específicas em que elas estão a ser aplicadas, a pergunta indignada não se faz esperar: És a favor do racismo?! És contra a democracia?!, por exemplo.

Quanto a usos desgarrados da palavra “democracia”, a resposta fica logo dada, bastando lembrar que a Coreia do Norte tem a designação oficial de República Popular Democrática da Coreia e que a Alemanha de Leste era a República Democrática Alemã.

Quanto à palavra “racismo”, a resposta tem de ser mais longa e pode até vir ilustrada com a fotografia de um cartaz que aparecia numa manifestação antirracismo: “Não sou racista, mas…”. Experimentemos completar a frase assim: “Não sou racista, mas há agora definições de racismo que são engendradas de modo a que eu não possa deixar de ser racista”.

Até há pouco tempo não havia lugar a dúvidas sobre o que a palavra “racismo” significava, mas hoje, infelizmente, tem de haver. Antes, sonhava-se com o fim do racismo quando “os meus quatro filhos um dia viverem numa nação em que não sejam julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter”. A definição de Luther King foi sempre de aceitação unânime desde os anos 60 até há muito pouco tempo. Hoje essa definição é controversa. Hoje, para Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, “o racismo deixará de existir quando quem o sente disser que já não existe“. A frase é absurdamente contraditória (se o indivíduo o sente, porque irá dizer que já não existe?), mas não deixa de comunicar com eficácia, como aliás cada vez mais acontece. A avaliação de racismo deixa de ser feita com base na equidade das ações – externas, observáveis, objetivamente ajuizáveis – tomadas pelas instituições e pela sociedade em geral, que se quer cega quanto à cor da pele. A avaliação de racismo passa agora a ser feita com base nas emoções que as interações sociais podem provocar no indivíduo. A clivagem entre grupos raciais que esta definição cria é desoladora: se eu, branca, tenho de perceber que no fim de uma conversa com um negro ele pode sentir racismo nalguma coisa que eu disse – e que tal é, em absoluto, racismo – isso implica que eu não posso falar com ele livremente como faço com outra pessoa qualquer ou como outra pessoa qualquer faz comigo. Não podemos estar os dois de igual para igual. E se assim é, então ele não pode ser meu semelhante.

Os exemplos de expansão abusiva da definição de racismo são quotidianos. Apenas mais dois.

Cristina Roldão, socióloga, professora e investigadora, em entrevista à UALMEDIA, da Universidade Autónoma de Lisboa, explica que a “raça não existe, a raça é uma construção histórica, uma construção social. Ela não existe biologicamente (…). Ela organiza-se definindo estatutos sociais, quem tem direito e quem não tem direito, quem é mais valorizado e quem não é. Nesse sentido, a raça existe e Portugal é um país racista, (…)”. É por isso que um negro não pode ser racista para com outro negro, “porque nós, os negros, não temos uma posição de privilégio nas relações de poder raciais, não há um suporte, um enraizamento histórico”. Salvo quando 20 mil moçambicanos tiveram de fugir da África do Sul, perseguidos por motins nos bairros negros, que resultaram em dezenas de mortos, como em 2008 e 2015; ou quando, em 1994, no Ruanda, milícias hutus mataram 1 milhão de tutsis; ou quando por toda a África Ocidental a escravatura foi praticada antes e depois da chegada do homem branco.

Um último exemplo. Para responder afirmativamente à pergunta sobre se Portugal é racista, o Público divulgou em junho o resultado do European Social Survey de 2018/2019. De acordo com este inquérito, 62% dos portugueses são racistas. O inquérito incluía 3 perguntas, sendo que uma delas era “Há culturas mais civilizadas do que outras?” à qual uma pessoa decente responde “sim”. As culturas que não praticam mutilação genital feminina são mais civilizadas do que as que a praticam; as culturas que não casam crianças são mais civilizadas do que as que as casam; as culturas que não fazem perseguição aos albinos são mais civilizadas do que as que a fazem; as culturas, onde a religião é tudo, que obrigam as mulheres a usar burka são menos civilizadas do que as que não obrigam. Etc.

Vê-se assim que racismos há muitos. Por isso, na carta, os escritores também usam a palavra no plural.

Depois de fazerem o seu retrato da situação em Portugal como um país à beira de sofrer uma “quebra irreparável dos valores humanistas”, os escritores fazem várias exortações, entre elas aos professores das escolas e das universidades no sentido de se distanciarem e distanciarem os seus alunos de todas ideias nocivas e imorais, abundante e estridentemente enumeradas na carta.

A lista de ideias funestas é vasta e heterogénea. Tomemos, como exemplo, as “teses anti-imigração”. Decorre do conteúdo da carta que os professores das escolas e universidades, de modo a distanciarem-se das teses anti-imigração, devem ou estar calados ou discutir o assunto no âmbito apenas das teses pró-imigração, teses que assinalem a riqueza da diversidade da culinária, a importância da presença dos imigrantes para o rejuvenescimento da população da Europa (por algum motivo, julga-se sempre que os imigrantes não envelhecem também); teses que promovam a contínua indignação e condenação das autoridades por não deixarem entrar livremente os migrantes que querem chegar à Europa em busca de uma vida melhor. Na carta, os escritores dizem que “quem gosta de Portugal jamais diz ‘Vão!’, antes diz ‘Venham!'”. E têm razão. Em 2018, a EU canalizou para Portugal 10,2 milhões de euros para acolhermos 1.010 refugiados, mesmo sabendo que no período anterior (2015-2017) quase metade tinha deixado Portugal em favor de outros países europeus. Que Portugal devolva o dinheiro correspondente à UE é pouco provável, donde, de facto, não faz mesmo sentido nenhum alinhar em políticas anti-imigração.

Mas pode haver algum aluno que queira trazer à discussão algumas questões não perfeitamente condizentes com as teses pró-imigração e referir que, por exemplo, em 2015 entraram na Alemanha 1,3 milhões de migrantes, dos quais apenas um quarto encontrou emprego – emprego esse, ainda assim, que não lhes traz o rendimento suficiente para viver, pondo um peso elevadíssimo no orçamento de Estado, a ponto de Merkel perentoriamente jurar que o “Venham!” alemão não se repetirá nunca mais. O estudante pode também querer assinalar que 60% dos migrantes que entraram na Europa em 2015/2016 eram imigrantes económicos, e não refugiados, e então concluir que se não queremos ver imigrantes a morrer no mar e em campos de refugiados deploráveis das duas uma ou decidimos que estamos dispostos a transferir a população do Médio Oriente e África para a Europa ou, se não for esta a opção, tem de haver números e critérios de entrada de imigrantes, muito bem discutidos, ponderados e divulgados junto dos países de origem. Tem de haver, portanto, discriminação.

Um professor, um aluno – qualquer pessoa – deve poder criticar a exaltação enlevada da diversidade e do multiculturalismo sem se ver encostado à extrema-direita e ao fascismo.

Temos a ideia do escritor como a voz isolada que fala a verdade que os outros veem ou intuem e não sabem ou podem formular. Fá-lo, em primeiro lugar, por si próprio, para estar à altura da fasquia que para si toma de homem digno. Não o destrinçamos na voz coletiva que gerou esta carta. Cremos que ele esteja lá, afogado na voz gregária que nos serve o retrato de uma realidade que ninguém vê, brandindo palavras virtuosas e oferecendo-se como nosso guia moral. Se não tiverem razão, têm a superioridade numérica. Assim são os escritores de regime.