O maior problema das elites é falar-se do problema das elites. Fazemo-lo com alarme e compunção; mas o que nos compunge é sobretudo nós próprios: o sinal mais certo das elites é deplorar a falta de si mesmas. São todavia emoções desnecessárias. Se um génio nos concedesse a satisfação do nosso desejo e os outros se transformassem no que pretendemos ficaríamos rodeados por pessoas muito parecidas connosco. O mundo passaria então a ser exclusivamente constituído por pessoas preocupadas com a falta de pessoas como elas.

‘Ai Jesus que já não há ninguém inteligente e preparado’ é um grito que ecoa desde tempos imemoriais, e na corte e na cidade. Lamenta-se que à Europa ou ao romance faltem gigantes; e lamentam-se em especial aqueles que no tempo dos gigantes os achavam apequenados. Os gritos sugerem cálculo e espontaneidade; a metade calculada é calculada, e a metade espontânea é insensata. A parte do cálculo exprime-se quando se alvitra, no interesse público, o financiamento de métodos eugénicos para a produção de elites. Pede-se à saúde e à educação, que por tal razão devem ser públicas, a responsabilidade de encorajar a multiplicação de pessoas extraordinariamente bem preparadas; e crê-se genericamente que cabe ao Estado garantir que ninguém morre antes de tempo, de rubéola ou de tédio, ou em qualquer caso fora do país que o viu nascer.

Em boa verdade a parte calculada do clamor já contém uma medida de insensatez. Se houvesse modo público de multiplicar por desígnio pessoas como nós (em workshops de templários, ou acampamentos de jovens empreendedores), o resultado seria letal para quem o reclamasse, visto que cedo se veriam avassalados pelos frutos do seu cálculo. Os métodos experimentados do nepotismo ou das outras carreiras abertas aos talentos são muito preferíveis. Tal como o fascínio pela inteligência ocorre caracteristicamente a pessoas pouco inteligentes, a ideia de encorajar a multiplicação massiva de pessoas bem preparadas só ocorre a pessoas pouco preparadas; e à maioria o problema das elites não ocorre.

Ainda está por perceber a forma inepta de vaidade que leva pessoas a queixar-se da falta de pessoas como elas. A imagem é a de quem, diante dos seus óculos, maldiz o facto de os ter perdido; ou de quem procura crianças para adoptar em abstracto quando tem por perto um pomar de sobrinhos. Como num sonho ou num plano quinquenal, o lamento sobre o problema interrompe-se ainda por cima antes da parte em que nos seriam comunicados os pormenores da solução. O que fica é então a expressão de uma nostalgia difusa; mas a nostalgia por um mundo de pessoas inteligentes e bem preparadas é circular e intransitiva: consiste apenas na admissão, característica das elites, de que, decerto por defeito da criação, este mundo não faz justiça a quem acha que todos deviam ser como eles.

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