1. Como é publicamente sabido, embora não acolhendo a posição radical do Bloco e do PCP (partidos de extrema esquerda) de proibir todas e quaisquer PPPs na nova lei de bases da saúde, António Costa propôs a esses partidos uma solução legislativa que declarava as PPPs aceitáveis só como supletivas, excepcionais e temporárias. Mas nem esta proposta minimalista foi aceite. Então, a lei acabou por nem proibir nem declarar supletivas, excepcionais e temporárias as PPPs. Mas António Costa comprometeu-se publicamente a deixar morrer estas experiências de democracia participativa — sim, porque as PPPs são uma das muitas práticas, internacionalmente bem conhecidas, de democracia participativa que têm vindo a ser ensaiadas em muitos países. Verifica-se agora que, em consequência desta orientação política do PS de António Costa, é noticiado que se estão terminando, na área da saúde, PPPs que foram um sucesso económico e de gestão, e prestaram serviços de saúde que agradaram muito aos utentes. Mais futuro Estado burocrático, à custa de maior desperdício financeiro e de menor satisfação e liberdade de escolha dos utentes: o típico resultado do socialismo burocrático de Estado centralista, que só conta derrotas históricas e contudo continua a ser hoje defendido em Portugal.

2. Como já lembrámos em artigo anterior, a Constituição Política portuguesa adopta a democracia liberal-democrática pluralista; e não uma democracia “popular” centralista. Mais precisamente, adopta a «democracia participativa» como devendo ser «aprofundada» pelo Estado de Direito Democrático («aprofundamento» é o termo constitucional). Recorde-se novamente o que diz o art. 2.º da Constituição: «A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa». E recorde-se ainda que o inciso «realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa» foi introduzido na Constituição pela revisão constitucional de 1982, com a aprovação do PS, PSD e CDS e a oposição do PCP e da UDP (antepassada do Bloco) — substituindo a expressão original do texto, que propunha outro objectivo: a «criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras».

Mais recentemente, por negociações interpartidárias entre Marcelo Rebelo de Sousa, então líder do PSD, e António Vitorino, em representação do Governo do PS de Guterres, deu-se um passo ainda maior para a democratização da democracia portuguesa, na revisão constitucional de 1997, com a adopção do «princípio da subsidiariedade do Estado» (art. 6.º da Constituição).

3. A avaliar pela escassez de debate público sobre esta fundamental questão democrática, entre nós (ao contrário do que acontece em outros países europeus), é de presumir que muitos portugueses não tenhamos bem presente a nossa doutrina constitucional da democracia participativa — que, como vimos, é obrigação do Estado promover. Tal falha de conhecimento político na opinião pública é sem dúvida culpa maior dos partidos democráticos que aprovaram as referidas revisões constitucionais; mas também de muitas outras instâncias, económicas, sociais, científicas, universitárias e culturais da nossa Sociedade Civil, incluindo a comunicação social, que não confrontam os partidos e as ideologias centralistas de esquerda que nos têm governado com a doutrina constitucional; nem debatem a questão actual da «democratização da democracia».

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4. Em brevíssimo resumo, diremos aqui que (embora se possam alegar precedentes porque a questão da democracia é muito antiga), foi desde as últimas décadas do século XX que a ideia da democracia participativa entrou expressamente nos debates e em várias experiências ensaiadas nos países democraticamente avançados. Se alguém for ao Google e procurar por esta expressão, democracia participativa, em inglês, em alemão, em francês, em italiano, em espanhol e inclusive em português, encontrará uma abundantíssima informação sobre a literatura e sobre as experiências já efectivas em muitos países. Mais, ainda: entre nós, há várias instituições e experiências práticas que se integram na ideia da democracia participativa. O que não há, ou quase não há, é debate e reflexão pública sobre a questão doutrinária subjacente — mesmo depois de o legislador constitucional de 1982, ao introduzir a sua consagração no texto constitucional, ter demonstrado conhecer e valorizar essa doutrina; e a ter reforçado, em 1997, com o princípio da subsidiariedade do Estado.

5. Ora, é precisamente esta falta de debate público (desde logo partidário, mas também da Sociedade Civil) que permite que iniciativas partidárias socialistas que fazem retroceder a nossa democracia constitucional pluralista e participativa — propostas como a da ilegalização das PPPs — possam ser defendidas e até votadas no Parlamento sem qualquer alarme democrático. E pior ainda, alegadamente em nome da democracia.

E não, nem sequer é verdade que a ideia do socialismo seja de raiz centralista e estatista. Dos mais importantes contributos doutrinários e movimentos do socialismo anterior a Marx era de inclinação anarquista. Marx ocupou-se largamente em combater o socialismo de Proudhon, e de outros, que apelidou de socialismo utópico, a que contrapunha o seu socialismo, que classificou de científico, propondo uma ditadura de classe para o implementar, em vez de formas participativas de base precisamente opostas aos poderes de Estado, considerados poderes irreformáveis. Hoje, ninguém dá razão a Marx, na questão da democracia. Aliás, os ideais de socialismo descentralizado sobreviveram sempre, até no campo comunista, por exemplo com o socialismo jugoslavo. No Ocidente, o afastamento crescente das teses marxistas da ditadura do proletariado e das pseudo-democracias populares, por parte dos (não por acaso) chamados partidos do socialismo “democrático”, é uma facto indesmentível. Com a duvidosa excepção ibérica, sempre a última região do Ocidente a caminhar para a democracia.

5. Perante a referida omissão dos nossos partidos democráticos sobre a permanente e essencial questão da democratização da democracia, os nossos actuais partidos socialistas são muito mais facilmente todos centralistas e jacobinos; defendem dogmaticamente a iniciativa do Estado em sectores principais para o exercício de uma hegemonia cultural e político-administrativa, a que dão quanto possível um estatuto de monopólio perante a iniciativa privada concorrente (por exemplo na educação, na saúde e na acção social). Sem uma crítica severa e persistente da oposição. Entre nós, vem dos próprios órgãos de governo político uma constante campanha “socialista” em favor do que é «público» (no sentido de iniciativa do Estado) e em desfavor do que é “privado” (no sentido de iniciativa dos cidadãos). Invertendo a questão constitucional: porque o Estado tem por função apenas servir e garantir os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

6. Por estes dias do consulado de António Costa, uma boa parte da nossa opinião pública já anda alarmada com a hipótese de uma maioria eleitoral de dois terços dos partidos da “geringonça”. António Costa já declarou publicamente que seria boa ideia uma revisão constitucional na próxima legislatura. Considerando a guinada política para extrema esquerda que ele inaugurou no PS, e o facto dessa provável maioria de dois terços ser portanto de esquerda toda ela jacobina, é certo que ela só poderá ser para uma revisão constitucional de orientação democrática anti-liberal contrária à da actual Constituição — talvez para “uma forma velada e subtil de ditadura”.

7. Claro que se levanta aqui uma responsabilidade histórica para os nossos partidos do centro democrático: se os seus líderes actuais deixarem reduzir eleitoralmente os seus partidos a um terço ou ainda menos, vão ficar culpabilizados por uma derrota da democracia portuguesa pluralista e participativa; e restar-lhes-á, perante o passado democrático desses partidos, uma vergonha histórica. Mas, nesse caso, o PS de António Costa não vai infligir uma derrota menor ao PS — que, desde que Mário Soares, em 1978, preferiu uma aliança com o CDS do que com o PCP e a UDP (antepassada do Bloco de Esquerda) para continuar a dirigir o Governo na primeira legislatura constitucional. Foi portanto Mário Soares, nessa altura e confirmando sempre depois, que ergueu o tal muro que António Costa diz que separou o PS da extrema esquerda na governação política. Porque só o muro com o PS foi derrubado, uma vez que não consta que o muro entre os partidos de extrema esquerda e os partidos democráticos do centro tenha sido derrubado por António Costa.

8. Não, não é a maioria absoluta do PS que determina esta derrota da democracia pluralista e participativa constitucional, se sobrevier uma maioria de dois terços dos partidos socialistas autoritários. O PS já teve anteriormente uma maioria absoluta; e nem por isso houve uma maioria de dois terços de uma “esquerda sem muro”. Se é que ainda existe o PS de Mário Soares e dos demais líderes que lhe sucederam e fizeram as revisões constitucionais que nos trouxeram até à democracia pluralista e participativa, que hoje está na Constituição, é de imaginar como esse PS não andará humilhadamente preocupado.