A disputa interna em curso no PS tem vários aspectos interessantes, mas talvez o mais saliente seja a forma extremamente negativa como António José Seguro, a sua liderança e a sua base de apoio têm sido retratados por boa parte da comunicação social e dos fazedores de opinião. Um retrato que, por sua vez, contrasta em absoluto com as perspectivas extraordinariamente positivas que vão sendo repetidamente difundidas sobre António Costa.

Para melhor contextualizar a situação, vale a pena começar por recordar alguns factos relevantes.
António José Seguro foi eleito líder do PS em Julho de 2011, após uma pesada derrota eleitoral do partido. Pouco tempo antes, com o Governo liderado por José Sócrates, o Estado português chegou ao limiar da bancarrota. Viu-se obrigado a um pedido de ajuda externa para continuar a ter possibilidade de cumprir os seus compromissos.

Por qualquer critério, este seria sempre um contexto muito difícil para assumir a liderança do PS. Tão difícil que é perfeitamente compreensível que outros potenciais candidatos à liderança, como António Costa, tenham nessa altura preferido resguardar-se e não avançar. Partindo desse contexto muito difícil de 2011, o PS liderado por António José Seguro conseguiu uma vitória clara – ainda que não esmagadora – nas eleições autárquicas de 2013.

Mais recentemente, ganhou as eleições europeias, conquistando mais mandatos e ficando à frente de PSD e CDS coligados. Mais uma vez, a margem da vitória não foi esmagadora – 31,46% e menos de quatro pontos percentuais acima da coligação entre PSD e CDS – mas importa ter em conta que Seguro conduziu o PS a um dos melhores resultados entre os partidos socialistas a nível da União Europeia. O Partido Socialista francês, liderado pela ex-grande esperança da esquerda europeia François Hollande, ficou abaixo dos 14%. Na Alemanha, o SPD conquistou 27% dos votos. Os trabalhistas ingleses, apesar de estarem na oposição, ficaram abaixo dos 25%, apenas cerca de um ponto percentual acima do Partido Conservador e atrás do UKIP, que venceu as eleições. Em Espanha, numa realidade mais próxima da portuguesa a vários níveis, o PSOE, também na oposição, obteve apenas 23% e perdeu as eleições para o PP. Na Grécia, a aliança que integrou o PASOK ficou-se pelos 8%.

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Atendendo ao panorama europeu e aos desafios que se colocam aos partidos tradicionais de centro-esquerda na Europa (estejam eles no Governo ou na oposição), o resultado obtido pelo PS liderado por Seguro parece, comparativamente, bastante positivo. Curiosamente, foi precisamente a vitória do PS nas eleições europeias que despoletou uma súbita disponibilidade do antes indisponível António Costa para assumir a liderança. Mais curiosamente ainda, quase instantaneamente essa disponibilidade despoletou uma aparente vaga de fundo de entusiasmo entre jornalistas, comentadores e analistas. O consenso instantaneamente formado parece ir no sentido de que António José Seguro é uma absoluta nulidade, sustentado apenas pelo mais abjecto caciquismo enquanto António Costa é o líder que o PS e o país ansiosamente aguardam para resolver todos os problemas nacionais.

António Costa é sem dúvida um bom comunicador e tem boa imagem. Teve também bons resultados eleitorais nas eleições municipais em Lisboa. Mas será isso suficiente para justificar tanto entusiasmo? Parece razoável que haja dúvidas sobre se António José Seguro poderia ser um bom primeiro-ministro, ainda que seja estranho que as críticas mais violentas venham da esfera do PS. Mas a prudência aconselharia mais dúvidas ainda sobre a narrativa prevalecente que faz de António Costa um novo D. Sebastião, pronto a resgatar o país das trevas.

O que torna pertinente a questão de saber o que é que Costa tem que Seguro não tem. Não me atrevo a ir tão longe como João Cardoso Rosas que, em artigo recente, explica a notável dualidade de tratamentos com a pertença de Costa a uma ‘old boys network’ e aos círculos de interesses, poder e influência que controlam os destinos da política portuguesa. Mas, mesmo sem ser ter qualquer entusiasmo particular por António José Seguro, é difícil não concluir que a sua grande lacuna é ser, comparativamente, um outsider. Foi tolerado – ainda que não desejado – quando assumiu a liderança do partido numa situação muito difícil, mas é obrigatoriamente para descartar assim que a perspectiva do poder aparece no horizonte.

Independentemente da existência ou não de uma ‘old boys network’, para o sistema político-mediático vigente, a ideia de Seguro continuar na liderança do PS num cenário de poder é simplesmente inaceitável. Se a vaga de fundo político-mediática prevalecer, Costa acabará – com maior ou menor dificuldade – por empurrar Seguro da liderança, restabelecendo a ordem natural das coisas face à percepção do caos induzido por um corpo estranho. Não sei se será suficiente para levar o PS a uma maioria absoluta ou, na sua ausência, para formar uma harmoniosa coligação governamental entre o PS e a extrema-esquerda. Mas será pelo menos a confirmação de que o PS – e, na parte correspondente, o sistema partidário português – continua essencialmente fechado e centralizado.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa