Todos nós vivemos, hoje, sob o estigma e a sensação de risco de contagiar e ser contagiados. Todos esperamos a melhor vacina e uma breve conclusão desta crise, que chegará em 2021 ou 2022 – assim esperamos. A economia, as nossas relações familiares e sociais, a confiança para fazer, investir ou planear estão, na verdade, dependentes disso. Por mais apoios públicos ou promessas de sustentação mínima dos setores mais afetados da nossa economia e da nossa sociedade, nada resolve a questão como o retorno a uma realidade que, fora da peste, nos permita normalidade – e nunca, como hoje, a normalidade se assemelhou a liberdade.

Que lições podemos e devemos tirar desde já do nosso contexto atual? Eu destacaria duas.

A primeira delas tem que ver com o que chamamos, creio que generosamente, de “lares”. Os mais velhos de nós todos somos nós também. São o que fomos e o que nos permitiu sermos o que somos. O seu pior destino é serem encarcerados em instituições que, por melhores que sejam a sua vontade e as suas valências e dos seus profissionais, não são mais do que prisões ou, na melhor versão, hospitais especializados e pacientes, muitas vezes com o pesar e desgosto dos seus familiares. Há que fazer algo de novo. O envelhecimento e a dependência são dois traços que definem a Europa neste início de século XXI. O que queremos e o que é decente almejarmos para o nosso futuro e para aquele dos nossos pais? Quer-se alimentar um negócio de ricos e para ricos e um negócio, inferior e mínimo, de pobres e para pobres? Quer-se que os nossos últimos anos de vida, eventualmente os mais sábios, mas com boa probabilidade os mais dependentes de outros, sejam apenas anos de suplício ou de vergonha?

Se a crise pandémica Covid-19 não servir para repensarmos o que queremos, como políticas e como investimento, para com os nossos mais velhos, será um desperdício de dinheiros e de decência pública. Mais um aeroporto adicional? Mais uma linha férrea? Mais um conjunto de apoios a startups de falência assegurada? Quem não trata bem do que tem e a quem deve o que é, está na condição de ser o que provavelmente sempre foi estruturalmente: ingrato, fraudulento, injusto. E isso está, efetivamente, na nossa mão mudar, institucionalmente, para todo o sempre. O tempo de mudar é agora.

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Por outro lado, a vivência laboral da pandemia, desde março de 2020, já nos ensinou alguma coisa. O teletrabalho, do qual muitos desconfiam, é a evolução natural da prestação de trabalho, em diversas circunstâncias. Claro que haverá sempre a necessidade de estar presente, fisicamente, para diversas funções e tarefas. Mas é essa a evolução natural, apoiada pela tecnologia que se desenvolveu nas últimas décadas para cumprir uma vocação óbvia e humana, que é a de prestar um serviço e merecer uma retribuição, estejamos a falar de um acionista, estejamos a falar de um trabalhador indiferenciado.

Espero que muito pouco, a este nível, volte a ser como dantes. Perder três horas por dia em transportes públicos e em deslocações para e de um local físico de trabalho é, como todos sabemos hoje, na verdade uma loucura dispensável em muito casos – mas aquilo que muitos de nós vivia e vive diariamente. O que me pode e deve impedir de trabalhar em casa ou onde queira, se o posso fazer com a mesma qualidade e produtividade – ou superior? Conheço bem as vantagens da presença física e da partilha frente a frente – mas nada também o impedirá de futuro, em momento concretos, espero.

Toda a nossa ideia de trabalho está, até juridicamente, associada a um conceito de “penosidade” dessa prestação. Mas porquê? Creio que esta, no meio do medo e da ameaça que todos sentimos, foi uma das lições que recebemos. Um país pode funcionar com boa parte dos seus recursos laborais à distância e, em boa medida, até com vantagens para todos.

A administração pública, nesse contexto, poderia dar um bom exemplo. Claro que há serviços públicos, diversos, que exigem a presença física de trabalhadores. Mas outros serviços, muitos, podem funcionar com boa parte dos seus trabalhadores em contexto de teletrabalho com as ferramentas e os recursos adequados. O que significa isto para o futuro? Significa uma pressão distinta na entrada e na saída das cidades, significa uma adequação e redução de pressão para os transportes públicos, significa uma diluição – natural, diria eu – entre os nossos supostos “litoral” e “interior”, significa mais liberdade e tempo para as pessoas, sem prejuízo da sua avaliação e da sua prestação de trabalho. E tudo isso é valioso, especialmente se ponderado em conjunto.

Claro que é sempre mais fácil voltarmos, em breve, ao que “sempre” foi. Claro que é mais custoso tomar decisões que sejam de rutura. Mas algo, desde logo nestas duas realidades, deveria mudar. Queremos depósitos de velhos para morrerem longe de nós, à distância e de forma neutralizada, ou seja, indiferenciada, ou queremos outra coisa? Queremos trabalhadores exaustos já às nove horas da manhã, ou queremos outra coisa?

Não há, como em quase tudo, respostas absolutas ou infalíveis. Mas que são temas que deveriam andar a ser tratados –  e porventura são-no –, não tenho dúvidas.

A nossa geração, desde logo na Europa, quer ser conhecida pela gente que viveu uma pandemia no início do século XXI e sobreviveu, ou pela geração que iniciou uma nova fase de decência e de inovação quanto ao nosso modo de vida e de trabalho? A resposta a todos nós é devida, creio. E o tempo de a afirmar é, desde já, agora.