Talvez a função primordial da memória passe por promover o “esquecimento”. Não no sentido de ignorar o que quer que seja que viva – o que não é possível – mas de “diluir” aquilo que se vive numa rede interminável de ligações que, no limite, fazem com que tudo se ligue com tudo. E, dessa forma, a memória acabe por ser, simplesmente, sabedoria.

Talvez porque a memória seja exactamente a arte de re-ligar as coisas acaba por fazer sentido recordar que, etimologicamente, religião vem do latim: de religare; de voltar a ligar. O que, numa leitura mais ampla, nos permite entender a memória como “a religião” da mente. A arte de ligar e de voltar a ligar, tudo com tudo, para que se aprenda. Sem o que aquilo que se  vive se esquece. Simplesmente.

É por isso que a memória mecânica, que desafia para a reprodução de conhecimentos, em que a escola tanto insiste, sem que se perscrute o sentido daquilo que os liga a tudo o que sabemos, nos leva a um quase imediato esquecimento. Como se, por falta de ligações que os una, haja conhecimentos que “recusamos” e nem sequer assumimos como nossos. O que é trágico: porque a memória é – sempre! – um exercício de compreensão que a escola teima não entender.

No outro extremo, a memória fotográfica, que traz acontecimentos traumáticos à memória – reproduzindo-os até aos seus mais “insignificantes” pormenores, e repercutindo-se no tempo – ajuda a entender que aquilo que não se entende obstrói, como um eucalipto, todo o trabalho com que a memória associa informação. Sem o qual o traumatismo nos persegue. E, porque atormenta a memória com aquilo que ela não entende, nos impede de ligar. De voltar a ligar. De recordar. E de pensar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No entretanto, o “fazer por esquecer”, a que podemos chamar recalcamento, que todos tentamos fazer diante de episódios que nos envergonharam ou humilharam – ou nos magoam, simplesmente – acaba por ajudar a perceber, que a melhor forma de se ficar preso a uma memória é fugir dela. Na mesma linha do que aquilo que não se entende não “se esquece”. Não se transforma em sabedoria. E não se aprende.

Mas o mais estranho, é que, desde os episódios traumáticos da nossa infância, aos tropeções que vamos tendo, por exemplo, ou aos ressentimentos, a palavra de ordem de quem gosta de nós seja: “o que passou, passou!”. Ou: “não penses mais nisso!”. Desafiarem-nos a esquecer é prenderem-nos à memória. Como se fosse possível ignorar aquilo que não se entende antes de resolver todas as dúvidas que isso nos traz.

Não, não é a escrita que nos impede de recordar. São as memórias que censuramos. Aquelas que nos afastam da memória. Como se ignorar fosse esquecer. Como se a nossa liberdade começasse quando esquecemos. Quando a memória não é só a ponte entre o recordar e o recriar. É o trampolim do futuro. Sem futuro não há memória. Toda a memória é de futuro.