Parece que já ninguém quer ser professor. Os mestrados em ensino atravessam uma desertificação igual à do interior do país. Ninguém quer ir para lá. Aturar os filhos dos outros parece ser tarefa áspera e mal paga. “É o abismo”, ameaça-se. E com razão. Sem professores teremos disparate pela certa durante décadas. E parece que nem sequer é apenas uma questão de dinheiros.

Entre as principais razões que me levaram a mim e a muitos escolher ser professor há uma que sempre presidiu a todas as outras: a liberdade. Encontro neste ofício uma latitude de actuação que sempre me atraiu. Nem sequer é aquela coisa de ser dono e senhor dentro da minha sala de aula ou não ter patrões em cima de mim a toda a hora. Isso é parvo e é falso. Tem mais a ver com a possibilidade de criar uma atmosfera que me permita conquistar os meus miúdos para o prazer de saberem coisas. E de os ver, à minha frente, a construir esse mesmo conhecimento de si, dos outros e de todas as coisas. Uma atmosfera única, intransferível, que preparamos e construímos, todos os dias, cada um no seu canto da escola, por esse país adentro, constante e metodicamente. Diga-se o que se diga, essa largueza seduz.

Uma largueza que já chegou a ser curricular. Espaços de liberdade, mesmo que modestos, fizeram já parte da lei. Chamaram-se “Área Escola”, “Área de Projecto”, “Estudo acompanhado”, “Desenvolvimento Pessoal e Social”, “Educação para a Cidadania”, “Cidadania e Desenvolvimento”, “Ofertas de escola”. Começaram por ser espaços em que se confiava às mãos dos professores e alunos umas horas por semana para desenvolverem ideias próprias e projectos originais, sem a urgência obsessiva do cumprimento de um currículo fixo e invariável.

Muitas destas disciplinas foram extintas, pura e simplesmente.  Outras vão sendo ensopadas em processos que começam bem e acabam raptados por solicitações de toda a natureza, depravando integralmente as benignas intenções originais. É patente que essa tal liberdade, ou “latitude” ou “largueza”, tem vindo a ser alvo de muita vigilância e inconsistência ministerial ao longo das últimas décadas.

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Há trinta anos que testemunho este cerco à liberdade de ensinar; como uma perspectiva centralizadora da aplicação de um currículo, conforme a lei e aferível, dá cabo de todo e qualquer estímulo que faça da docência uma profissão atraente. Durante todo esse tempo assisti às intempéries legislativas que foram retirando espaço de acção aos professores. Subtraíram a sua capacitação para autonomamente decidir o que leccionar, onde e como. É esta liberdade de acção que hoje cada vez mais cobiço. Esta largueza é o que pode definir o futuro da profissão. Ela representa o que quer que eu possa ter de único e de exclusivo. Se cada aluno é excepcional, cada professor também o é. E tudo, sistemicamente, deve ser concebido de forma a celebrar essas duas singularidades.

Quando era um rapazito, os programas escolares eram seguidos, mas nunca passava pela cabeça de ninguém interferir na acção do professor. O sistema autorizava e prestigiava a presença de personalidades únicas que eram as luzes e as iluminações de uma escola. Todas as escolas tinham as suas estrelas. O professor isto e a professora aquilo – o seu nome era sempre um escalão profissional – definiam uma determinada atmosfera que se estabelecia em nós, alunos, ainda antes de começar qualquer aula.

Ao entrar na sala sabíamos que iríamos assistir a uma aventura idiossincrásica. O estilo, a verve, a dinâmica, a exigência, o vocabulário, enfim, uma miríade de características que nos faziam sentir que estávamos em presença de um espírito vivo, poderoso e sedutor. Uma inspiração. Cada um de nós teve o seu Rómulo de Carvalho.

Sempre senti que esses professores eram os proprietários do que ensinavam. Não lhes reconhecia a capacidade de abdicar dessa sua prerrogativa que era escolher o modo como se entregavam aos seus alunos. O nosso lugar era o de espectadores. Nunca passivos. Nunca alheados. Sempre envolvidos. Embevecidos. Até mesmo inferiores. Alguns desses professores nunca inovaram nada na sua vida. Nunca usaram qualquer tecnologia, nem nunca a recusaram. Cada aula era um acontecimento que valia pelo professor e pela sua forma de ser e de o testemunhar.

Como professor, invejo essa latitude dos meus professores. A largueza. A liberdade. Com eles, apanhei à mão materiais na praia para fazer esculturas; calcorreei uma praça histórica inteira para descrever minuciosamente todos os seus edifícios, função, história e forma; fiz trabalhos de grupo sem a sua orientação; organizei palestras e conferências; fiz explodir uma instalação eléctrica que eu aparafusara a uma tábua e que me fez saber tudo sobre transformadores, curto-circuitos e caixas de derivação, dois meses depois de acabar um tapete de Arraiolos.

Todos estes desenlaces nasceram da acção emancipada de pessoas que só por acaso eram professores. Sabíamos que muito do que aprendíamos chegava-nos directamente dos seus interesses pessoais e das suas propensões. Víamo-los fora da escola. No cinema. A declamar poesia. Íamos ao lançamento dos seus livros. Encontrávamo-los em peças de teatro. Bebiam a vida. A cultura, sempre a cultura.

Esta dimensão mais que humana, soberana, dos meus professores faz-me muita falta. Não sinto que estejamos melhor. Não sei onde integrar esses meus heróis tridimensionais na escola de hoje. Foram e são ainda as minhas estrelas. Preciso que regressem. Longe da guerrilha mediática e das ambições de ribalta, que lugar tem hoje na escola o carisma de um professor?

 

Professor de História, vencedor do prémio Global Teacher Prize Portugal 2019. Foi External Expert em educação para a Comissão Europeia e Vereador da Câmara Municipal das Caldas da Rainha.

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.