Há uma vintena de anos, o governo do então primeiro-ministro Cavaco Silva entendeu contratar um daqueles gurus inexplicáveis dos tempos modernos, por uma quantia digna de um país europeu da convergência. Chamava-se Michael Porter e sabia tudo o que havia para saber sobre o que a economia de um país deveria ser. Como guru de jeito, o senhor tinha um “esquema” de powerpoint milagroso em que se explica quase tudo a partir daquilo que já toda a gente sabe. Mas, se tudo na ciência da gestão se enquadra em quatro quadrantes, se suporta em três pilares e se baseia em duas bases, o esquema do Prof. Porter era muito original. Tinha cinco forças. E estar sujeito a cinco forças torna a coisa completamente diferente de estar enquadrado em quatro quadrantes, ser suportado por três pilares ou basear-se em duas bases. Por isso, a equipa do Prof. Porter, que hoje está integrada na Deloitte depois de ter falido, veio para Portugal mapear o país nas cinco forças e, pela quantia despendida, produziu um relatório admirável sobre aquilo que deveria ser o seu desenvolvimento na economia global e na europeia em particular: apostar no tradicional, no vinho, no azeite, no turismo, etc. E em boa-hora, porque apenas dois anos depois a economia mostrou a validade do relatório: a maior exportadora portuguesa era uma empresa de semicondutores e a segunda de automóveis….

Deste episódio, que já parece muito remoto no tempo, podemos tirar várias conclusões das quais começamos pelas erradas. A primeira das erradas é que Porter era um espertalhão e a prova é que a empresa faliu. Na verdade, Porter é professor de Harvard que, de acordo com o Google Académico, tem mais de 340 mil citações. Atendendo que eu tenho umas 30, não serei eu aquele que colocarei em causa a capacidade do senhor em termos de conhecimento. Ele até pode estar errado, mas não questiono se ele acredita estar certo, e se ele acredita estar certo isso chega para eu achar que é sério, apesar de errado. A segunda conclusão errada seria que o governo escolheu os consultores errados e que se tivesse escolhido os certos, eles diriam – provavelmente com um esquema de seis blocos – que a aposta do país deveria ser semicondutores e automóveis. Não, provavelmente outros consultores quaisquer, perante a questão “em que é que o país deveria apostar?” responderiam sensivelmente a mesma coisa, depois de mapearem o país para o esquema de seis blocos, de cinco forças, de quatro quadrantes, o que fosse. O erro é mais fundamental e prende-se com a perceção que temos dos fenómenos económicos.

Economia não se passa nas pessoas, passa-se entre as pessoas. É uma coisa pouco intuitiva apesar de (quase) todos sabermos que assim é. O que significa, então, perguntar em que setores de um país apostar? E a resposta é: “rigorosamente nada”, porque não sabemos à partida no que o outro lado está interessado. Isto traz uma enorme insegurança, uma falta de controlo sobre o futuro que ninguém gosta de admitir. Mas é mesmo assim, é a natureza da coisa e não há alternativa fora das fronteiras atuais da Venezuela ou da Coreia do Norte.

Vejamos o caso do turismo lisboeta, por exemplo. Ninguém vai querer insinuar que o Sol de Lisboa é algo recente, que o Castelo foi uma aposta da Câmara ou que a visão para o negócio trouxe inúmeras camas de alojamento local ao Bairro Alto. Na verdade, já lá estavam quando as miríades de condições de mercado favoráveis se alinharam para que hoje seja uma das maiores fontes de entrada de dinheiro pela fronteira dentro. Da mesma forma que estavam os vinhos e os azeites quando as condições de mercado mostraram que iriam ter o sucesso que sempre mereceram.

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Dir-me-ão que o vinho e o azeite dão hoje mostras de serem uma indústria pujante e com um prestígio crescente no mundo, dando razão a Porter. O vinho e o azeite sempre lá estiveram, nunca as excelentes pessoas que o desenvolvem precisaram de mim para o que quer que seja, muito menos do Porter. Sabendo nós que um bom produto cedo ou tarde será reconhecido como um bom produto, a aposta no vinho só precisava do empenho das pessoas que a ele se dedicaram uma vida inteira, sem nunca terem visto um slide de powerpoint com cinco forças. E, à medida que as condições de mercado do lado do consumo se alinham, o trabalho dessas pessoas vai sendo recompensado por exclusivo mérito delas.

O que me traz aos Anti-Porter. Os Anti-Porter não são aqueles que acham, como eu, que é irracional empenhar os recursos de um país nas apostas de um estado. Os Anti-Porter são aqueles que sabem o que o país não deve fazer, uma espécie de antipartícula do velho professor americano.

Comecemos pelos baixos salários. Segundo a doutrina Anti-Porter, o país não deve ser um país de baixos salários, independentemente de haver quem os pague ou não. O que, em si mesmo, é uma declaração admirável. Ato contínuo, então o país deve apostar em atividades de altos salários, seja lá o que isso for. Daqui se deduz muito rapidamente que o Anti-Porter é também, tipicamente, anti-trabalho, pelo menos anti-o-seu-trabalho. Senão saberia o que é andar à procura de emprego nas várias condições económicas em que este país já viveu. Obviamente, para haver quem tenha um alto salário tem que haver quem se disponha a pagar um alto salário e este só acontece a trabalhadores de alto valor para quem os paga. Mas, por alguma razão que desconheço, somos bombardeados todos os dias por pessoas que reclamam uma condição a quem trabalha pela qual nós não podemos fazer nada: sermos ambas as partes de uma relação económica.

E se o velho Porter apontava o turismo como aposta, o Anti-Porter aponta o Anti-Turismo. Parece que o turismo é agora uma atividade de grande embaraço para a população portuguesa. Não só hordas de teutónicos de pé descalço têm desembarcado às pazadas de aeronaves de baixo custo, como andam por aí a descaracterizar o que de bom tem a cidade que tanto gostamos (Lisboa ou Porto, tipicamente, mas eu vivo em Lisboa). Se andassem a descaracterizar a cidade alojando-se no D. Pedro, ainda se admitia. Mas não, andam a alojar-se em casas de pessoas que arrendam por poucos dias, afastando as populações autóctones para fora da cidade que sempre povoaram. Devemos estar temerosos daquilo que serão os S. António e S. João do ano que vem, sabe-se lá que gentes estarão debaixo do arquinho e que marchas serão entoadas.

Hoje lemos dezenas de opiniões de pessoas que sabem o que é melhor para nós, mas que curiosamente não estavam cá ontem, quando era preciso. A verdade é que não há muitos anos, as pessoas que eram obrigadas a trabalhar na Baixa de Lisboa temiam pela sua segurança até conseguirem chegar ao Metro. A zona centro de Lisboa estava completamente despovoada, o mercado de arrendamento já tinha sido destruído e as populações autóctones há muito que eram autóctones de Massamá. Os poucos turistas que vinham a Lisboa era para constatarem a pobreza da cidade e os serviços de baixa qualidade a preços de alta. Entretanto, as várias circunstâncias do outro lado da economia favoreceram a visita daqueles que não sabiam aquilo que nós já sabíamos: este é um país único. Os turistas vêm hoje aos milhares visitar-nos, dando emprego a milhares de pessoas. O relatório Anti-Porter do mês reclama que esses milhares de pessoas deviam ter outro emprego, porque isto de ser empregado de mesa é para os filhos dos outros. Que outro emprego não sabemos, mas outro, porque este é desprestigiante. E sabemos nós que nem só de empregados de mesa vive o turismo, mas não vamos estragar um bom argumento com a verdade.

Outro bem atual é o “relatório” Anti-Porter contra o eucalipto, essa espécie de rato vegetal que destruiu a paisagem florestal portuguesa a troco dos chorudos lucros das empresas de pasta. Ora, parece-me óbvio que se o eucalipto que serve para fazer pasta ardesse não havia empresas de pasta, quanto mais chorudos lucros. Mas o mais curioso é que os “relatórios” reclamam, simultaneamente, os chorudos lucros e o abandono dos proprietários das terras porque não têm valor económico, o que é um daqueles fenómenos que vão ocorrendo na sociedade portuguesa e cuja explicação mereceria alguma atenção.

O “relatório” Anti-Porter contra o eucalipto refere ainda as enormes vantagens da plantação de árvores “não inflamáveis” (?) como o carvalho e o castanheiro, que dariam lucros inacreditáveis se houvesse a visão de investir neles. Eu até sou grato ao altruísmo destas pessoas que prescindem da vantagem de saber de um investimento fabuloso e o transmitem aos demais para que, todos juntos, possamos usufruir das vantagens de tal investimento coletivo. Mas, agradecendo, eu sugeria que não esperassem pela minha decisão e avançassem elas com o investimento, recolhendo os proveitos que naturalmente lhes cabe. Só gostava de alertá-las para o “relatório” Anti-Porter que irá surgir dizendo que a aposta nacional nunca deveria ter sido essa…

Os “relatórios” Anti-Porter que os setores mais ociosos da sociedade portuguesa produzem periodicamente são do mais nocivo que produzimos. Destroem a vontade de muita gente que quer fazer a sua vida de trabalho. Porque eles não só são resultado de má interpretação dos sinais da economia, como são contrários à formação de uma economia. Mais que dizer às pessoas que estão no setor errado, dizem-lhes que estão erradas quando investem, quando trabalham, quando tentam fazer de si um elemento válido de uma economia que vai progredindo apesar de tudo. E para aqueles gostaria de deixar uma mensagem: trabalhem, vão ver que é uma experiência gratificante e muitas das vossas dúvidas serão dissipadas. Para todos nós, apostemos naquilo que sempre soubemos apostar, uma educação cada vez mais exigente e uma saúde cada vez mais sólida. O resto? O resto, os outros dirão e, se formos bons, seremos nós ricos, em vez daqueles que sabem tudo o que é melhor para nós.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer