Que a crise dos últimos anos provocou uma regressão maciça do pensamento político, é algo que salta aos olhos: recurso a dicotomias simples, adopção de explicações primárias, pobreza na concepção da sociedade, passionalidade extremada, diabolização do adversário, etc. Que essa regressão, por motivos que não têm apenas a ver com a crise, conduziu a um retorno ao pensamento mítico, também é fácil de ver, embora talvez menos notado. Esse retorno ao mito, flagrante se examinado com atenção, vê-se de modo particularmente nítido em dois planos: o da linguagem e o do entendimento da história.

Quanto à linguagem, o ridículo da coisa tende a ocultar o monstruoso, um fenómeno muito mais vulgar do que parece. Porque a polícia da linguagem que por aí anda e não perde nunca a ocasião de apontar o dedo a presumíveis culpados aproxima-se, num formidável arcaísmo, de um entendimento das palavras próximo do pensamento mítico. É, dito muito simplesmente, como se as palavras, perdendo toda a ambiguidade que, por paradoxal que pareça, é necessária para a comunicação das ideias em certas matérias que escapam a determinações unívocas, nomeadamente aquelas que se referem à nossa experiência social e política, fossem transformadas em objectos, e em objectos dotados de mágicos poderes maléficos ou benéficos, devendo portanto ser submetidas a um vasto regime de proibições cuja implementação fica a cargo dos feiticeiros encartados da tribo.

Dito de outra maneira: é como se as palavras não servissem propriamente para referir algo que lhes é exterior e fossem antes elas mesmas coisas dotadas de uma actividade que lhes é própria, independente de qualquer intenção nossa no seu uso. Por isso, deixa de ser possível conceber qualquer distância em relação a elas, já que tal distância implica sempre a possibilidade de vários níveis da sua interpretação e convida assim a uma certa tolerância no seu uso. Usam-se certas palavras e o seu uso é imediatamente confundido com a identificação com certos objectos que elas em si representam: o bem e o mal, nomeadamente.

Exemplos disto são inúmeros. Tomemos o das palavras “descobrimentos” e “descoberta”, por causa do “Museu da Descoberta”. A 22 de Maio vinha no Público o texto de um abaixo assinado a este propósito, “Agentes culturais contra a designação e missão do «Museu da Descoberta» da Câmara de Lisboa”. É um texto muito curioso e até divertido, se formos inclinados ao gosto pelo teratológico. Numa longa prosa em que são invocados todos os argumentos (cujo valor e peso não discuto aqui, por falta de espaço) que os tempos oferecem, a palavra “descoberta” aparece como um precipitado de todos os crimes, reais ou imaginários, cometidos pelos nossos egrégios avós. “Descoberta”, referida aos descobrimentos portugueses, é uma palavra decididamente maléfica.

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Poderemos sustentar que nada nela implica, por si mesma, a ocultação do ponto de vista do outro, isto é, do ponto de vista dos povos que haveriam, no seguimento dos descobrimentos, de ser colonizados? Não, de modo algum, apesar de ser essa a natural interpretação que a maior parte das pessoas hoje em dia faria, felizmente instruída que está dos horrores da escravatura e das restantes partes doentes da nossa história. “Descoberta” passa a significar, de modo grotescamente unívoco, a opressão passada perpetrada pelos nossos antepassados. Nenhuma distância, portanto, em relação à palavra, nenhuma possibilidade de interpretação plural. A palavra “descoberta” é um objecto maléfico com a solidez de uma pedra e dotado de uma força mágica que é imperativo remover do espaço público, porque o contamina com os seus fétidos miasmas.

É claro que as palavras se discutem e se escolhem. E é igualmente claro que o investimento de certas palavras por significados (racistas, por exemplo) que podem ferir outros nos deve conduzir a preteri-las em benefício de outras. Mais geralmente, a revisão da linguagem em nome de melhores valores sociais, por mais hipocrisia que produza, pode até ter um efectivo valor civilizacional. Com sorte, a máscara cola-se à cara, por assim dizer. Mas procurar obter isso com o recurso a uma maneira de pensar arcaica e primitiva só pode ser, além de odioso, contraproducente. A magia não só não funciona como deixa marcas de ilusão que se pagam caro mais cedo ou mais tarde.

O retorno ao pensamento mítico não se limita certamente à questão da linguagem. Um outro aspecto é central, um aspecto que, de resto, colabora também com a concepção mítica da linguagem e a fortifica. É a ideia segundo a qual a história avança numa direcção pré-determinada, num sentido preciso que é inútil contrariar, podendo a direcção ser apenas provisoriamente retardada. Rui Ramos (“Porque é que eles nunca perdem?”) e José Manuel Fernandes (“Eu, rato de sacristia e racializado branco, me confesso”) abordaram já aqui esta questão em relação às reacções ao voto contra a legalização da eutanásia no parlamento (no caso de José Manuel Fernandes, a propósito de um artigo da deputada socialista Isabel Moreira). Essa crença é, também ela, uma crença puramente mitológica. A história real é feita de imprevisibilidade e de criação, de tempo e contingência, um tempo e uma contingência que são obviamente excluídos no interior do mito de uma necessidade histórica inelutável: a contingência não existe e o tempo é apenas o meio através do qual se dá o progresso em direcção a um Bem que se encontra previsto desde o princípio. Mas, para quem viva no interior do mito, a crença no sentido da história contamina toda e qualquer vivência particular. Aqueles cuja vivência escapa à crença em questão limitam-se a produzir sem-sentido, ou por ignorância ou por inconfessáveis interesses.

Mais uma vez, o desejo de buscar alguma inteligibilidade e algum sentido na história não só é inevitável como é até uma condição indispensável para a poder pensar. Acontece que essa inteligibilidade, sempre muito precária, só pode ser concebida sob o modo de hipóteses insusceptíveis de serem provadas ou refutadas, nunca como verdade irrefutável. Mas para quem viva no interior desse particular mito do sentido da história, que tem uma génese e um desenvolvimento perfeitamente identificáveis, a certeza é absoluta. O sentido da história é vivido sob o modo alucinatório, como uma realidade tão palpável como uma cadeira ou uma mesa, tal a força do mito.

Uma consequência muito prática e imediata deste duplo retorno ao mito é a impossibilidade de quem assim vive se colocar no lugar do outro, embora o outro, em ambos os casos, não lhe saia nunca da boca. Melhor: o outro, entidade finalmente abstracta, existe – os outros, realidade empírica com quem podemos e devemos dialogar, não. Daí o feroz desejo de unanimidade que atravessa esse tipo de discursos. Os mais ínfimos e indiferentes usos da linguagem podem ser condenados sem apelo nem agravo, em nome de uma virtude indisputável. E emitir opiniões discordantes nada menos é do que participar de uma irracionalidade que só merece desprezo por parte de quem se encontra dotado de uma inabalável visão do futuro. São estas algumas das consequências do retorno ao mito que representa bem o corolário da formidável regressão do pensamento político característica dos nossos dias.