Lá para o final dos anos 2000, o presidente Barack Obama tomou uma decisão: os Estados Unidos, em declínio relativo, tinham de recorrer ao retraimento estratégico para poderem regressar, refeitos, à política de poder.

As grandes estratégias escolhidas para gerir o poder relativo não fazem capas de jornal nem abrem telejornais. São quase sempre discretas e não declaradas. Neste caso, o retraimento era um tipo de postura internacional que ia ganhando favor entre os mais pragmáticos em Washington e na academia. Os seus teóricos mais proeminentes, Paul MacDonald e Joseph Parent descrevem-no assim: “Uma redução internacional do custo da política externa (…) uma limitação de despesas, riscos e responsabilidades”. Ou seja, uma potência em apuros retira-se do mundo – até certo ponto – para se reorganizar e poder voltar a disputar o poder nas suas plenas capacidades.

As vantagens desta estratégia são três: a diminuição das tentativas de equilíbrio por parte de rivais, que se sentem menos ameaçados; a possibilidade de a grande potência se virar para dentro e se reorganizar; e poder voltar aos sistema internacional com mais opções e em melhores condições de disputar o poder. Nixon tê-lo-á posto em prática com êxito nos anos 1970 (ainda que por pouco tempo).

Teoricamente, soa muito bem. Mas como Barack Obama percebeu, é preciso acompanhar o retraimento de uma segunda estratégia que justifique a quebra de compromissos internacionais, que são, aliás, aquilo que faz de um Estado uma grande potência. O presidente democrata acompanhou o retraimento silencioso com o declarado “rebalanceamento para a Ásia”, dando um sinal de que concentraria as forças americanas onde mais importava.

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Não teve grande sucesso, como ele próprio contou a Jeffrey Goldberg, numa longa entrevista de fim de presidência à revista Atlantic. Porque as Primaveras Árabes o obrigaram a concentrar-se no Médio Oriente, de onde poderia vir o maior foco de instabilidade internacional. O retraimento de Obama terá tido pouco sucesso, até porque a sua foi uma presidência de transição. Bush ainda gozou de uma América toda poderosa e unipolar; o seu sucessor viu-se a braços com um país em crise económica, com a reputação internacional estilhaçada e com a China a ganhar proeminência. E se é sempre difícil gerir o declínio, mais difícil ainda é gerir um declínio não antecipado.   

Já Trump resolveu o problema de forma diferente. Entregou as áreas mais complexas do globo a aliados que empoderou da forma que conseguiu. Sim, Trump tinha aliados. Não os convencionais, mas tinha. Voltamos ao exemplo do Médio Oriente: o presidente estabeleceu o equilíbrio da região apoiando incondicionalmente a Arábia Saudita e Israel (coadjuvados pelo Egipto), que tinham com os EUA o interesse comum de conter o Irão. A sua estratégia foi polémica – especialmente a retirada do Acordo de Não Proliferação com Teerão –, mas havia um fio condutor. A verdade é que a ausência dos Estados Unidos não se fez sentir em nenhuma zona nevrálgica do sistema internacional. Apesar das queixas – fundadas – europeias por Washington ter votado os seus mais antigos aliados ao abandono, o anterior presidente entendeu que a Europa não constituía qualquer problema de segurança e retraiu aí.

Biden tem um problema pela frente: concebeu uma ambiciosa arquitetura internacional, dirigiu-se aos aliados insatisfeitos e está concentrado em trazê-los para a sua esfera de influência. Até aqui tudo certo. Aliás poderia bem ser uma forma de compensação do retraimento americano: uma ordem defensiva, aliados firmes e concentrados em objetivos regionais de estabilização. Mas não é isso que está a acontecer. Sendo o prémio final a contenção da China, o atual presidente concentrou toda a sua estratégia na Ásia, deixando espaços vazios, onde rivais terão oportunidades de expansão.

Voltamos ao exemplo do Médio Oriente: durante décadas, foi uma das regiões que mais pesou nos cálculos de segurança nacional dos EUA. Por ser uma das mais importantes origens de energia a importar para o Ocidente, mas também pela tremenda instabilidade regional. Instabilidade essa que só tem vindo a deteriorar-se desde a intervenção americana no Iraque, que transformou por muitas décadas, o equilíbrio de poder regional. Também devido às insurreições que transformaram os regimes – veja-se o que se passa neste momento no Líbano e na Tunísia –; e, sobretudo, porque há uma disputa aberta pelo poder regional entre o Irão (xiita) e a Arábia Saudita (sunita). Disputa essa que pode levar a uma corrida ao armamento nuclear, caso as potências externas se demitam do seu papel regulador.

Ainda assim, Joe Biden excluiu o Médio Oriente dos “interesses vitais” americanos – que se concentram agora na Europa, na Ásia e no Hemisfério Sul. Compreende-se esta opção à luz do retraimento estratégico e da necessidade de conter a China. Mas pode bem ter o efeito contrário: abrir um corredor para a extensão da influência da Rússia, que aproveitou muito bem o afastamento de Obama do conflito da Síria, e até para Pequim, que tem interesses no Médio Oriente e que desenvolveu, desde os anos 1990, uma política externa clara de ocupação os espaços deixados vazios pelos Estados Unidos. A uma velocidade estonteante.

Para ser líder do mundo livre mantendo o retraimento estratégico, Biden precisa de duas coisas: aliados confiáveis (mesmo que não sejam democracias) e uma estratégia segura para onde possa haver necessidade da presença americana. Os Estados Unidos podem voltar a ser apenas uma “meia hegemonia”, para usar a expressão de Joseph Nye quando descrevia Washington durante a Guerra Fria. Mas para lá chegar é preciso ter em conta que a segurança é o bem comum mais importante do sistema internacional. E um Médio Oriente, mesmo às portas da Europa, instável, ou dominado pelas “autocracias” não deixa ninguém dormir descansado.