Donald Trump é um bully. Utiliza a crítica mordaz, a ridicularização, a humilhação, a criação e manutenção de rumores, como instrumentos de demolição do outro a partir de uma posição de privilégio que inviabiliza a capacidade de resposta dos oponentes. Insulta e agride. Trump, desde o início da sua campanha eleitoral, a da anterior legislatura, foi perito na ridicularização de traços físicos, características de género, diferenças culturais e religiosas, em exemplos canónicos que vão desde a imitação do repórter Serge Kovaleski, e da sua doença, às esteriotipias femininas para desvalorizar a opinião de mulheres, jornalistas ou outras, a pretexto de se ser gorda, feia ou estar com o período. Foi Trump quem descreveu os mexicanos como assassinos e violadores, os islâmicos como terroristas, os veteranos como fracassados, os que cumprem as obrigações fiscais como parvos. Trump, com absoluto desprezo pelas pessoas e pelas normas, pelos direitos e deveres em que a democracia assenta foi o presidente de um país, baluarte da república, durante quatro anos de reiterado abuso. E Donald Trump, agora a caminho de perder as eleições presidenciais, foi, ainda assim, em 2020, validado por setenta milhões de votos.

São setenta milhões as pessoas que votaram em Donald Trump. Metade dos eleitores norte americanos acredita que este é o homem certo para dirigir uma das maiores potências mundiais. Trump, no seu orgulho húbrico, envelope perfeito onde guarda a vergonha e a ansiedade da exposição, acredita também. Por isto preferirá mergulhar o país numa crise política e social a conceder vitória a Biden. E como o líder, os seguidores: ontem, podemos assistir à replicação do comportamento intimidatório de Trump, quando eleitores seus cercaram os locais de contagem de votos com o objectivo de dar a contagem por finda. E Rudy Giuliani a alegar fraude eleitoral. Ou Trump Júnior. Mas quando o líder é o presidente, os seguidores sentem-se legitimados.

Os EUA, ao contrário de democracias com outras características como, por exemplo, o Brasil, têm recursos constitucionais para fazer a gestão desta crise política. Mas tê-los-ão para fazer a gestão da crise social? Afinal, esta foi a crise que impôs Palin, reforçou o Tea Party e criou o QAnon, agora já com assento na Câmara dos Representantes na pessoa de Marjorie Taylor Greene. Poder-se-á ainda dizer que estes setenta milhões de eleitores votaram em Trump por este defender a primazia da economia americana?

Donald Trump, sobre quem Mark Singer, na The New Yorker, disse que havia conseguido algo extraordinário, «uma existência intocada pelo retumbar da alma», não é a razão da polarização política e social norte América, é apenas o seu beneficiário e o seu sintoma. O sintoma de uma crescente doença, a da ausência de pontes entre duas mundivisões que vão para além dos partidos Democrata e Republicano. Está em jogo a colisão de duas formas de vida encasteladas, duas culturas, a rural e a urbana, a conservadora e a progressista, religiosa e laica, a não diferenciada e diferenciada, onde as suas franjas, as mais à direita e mais à esquerda, reencenam uma versão actualizada, e não sem ironia, da Guerra de Secessão.

Este momento indecidido, permeado de medo de irremediáveis fracturas, é também o momento mais adequado para consolidar ideais humanistas e democráticos assentes no ideal de liberdade. O momento de ouvir o retumbar da alma.

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