Uma das marcas de uma ditadura é impedir que o povo seja enganado. Mas é quando não podemos errar que sabemos que estamos a ser manipulados. O que traz uma ironia amarga: a pessoa a quem foi assegurado que o mal não lhe toca é a que permanece sem poder melhorar. Qualquer melhoria para ser melhoria exige mudança, e qualquer mudança para ser mudança exige a possibilidade do mal. Todos os grandes antídotos contra o mal tendem a resultar em piores formas dele.

É também esta a lição exigente dos antigos e da história judaico-cristã da Criação. É muito difícil compreender como é que um Deus bom permite que o mal exista, mas é relativamente seguro olhar à volta e admitir que as nossas soluções mais esforçadas para que esse mal não nos toque redundam em estragos mais trágicos. Havendo liberdade que seja mesmo liberdade, ela parece estar inevitavelmente ligada ao risco de que algo desagradável possa acontecer. E, nessa medida, o caminho para ser livre não é recto ou pacífico, mas guinado por tribulações que testam se vamos trocar, na face de dificuldades, o desejo de ser livres por um bem menor, mais acessível e confortável. Ser livre, mais do que um troféu, é um teste. Mais do que sermos livres, fazemos por ser livres.

Uma crise funciona como uma radiografia que nos atropela com um diagnóstico terrível quando nos julgávamos saudáveis (a tal cantilena que por aqui tenho entoado das crises serem apocalípticas, reveladoras). Uma vez mais aborreço-vos com a repetição: a pandemia pendurou-nos a roupa interior no estendal à vista de todos. Os securitários anónimos confirmam publicamente que o que querem mesmo é que os políticos nos digam como viver; os narcisistas inconfessos não disfarçam que, desde que as circunstâncias lhes sorriam, querem mesmo é que os outros se rebentem; e por aí em diante. Então era isto que éramos pré-pandemia e que agora já não dá pra fingir?

Houve um telefonema com um querido amigo que ficou à rasca com Covid logo em Março de 2020 que me agitou um pouco, confesso. Acho que o meu medo de morrer só não foi maior porque tinha passado por trevas piores ainda, entre 2017 e 2019. Mas compreendo como é que tantos amigos, da minha idade e com os achaques típicos de uma geração protegida como a minha foi, se acagaçaram. Somos todos democraticamente medricas, nós, os filhos da Revolução Sexual. A única coisa que nos ensinaram a adorar foi mesmo o nosso corpo e, por isso, é tudo o que temos para defender: a nossa pele.

A nossa cobardia é democrática porque vai da esquerda à direita. Como no Século XX os totalitarismos foram substituições modernas da religião (fosse o fascismo, fosse o comunismo), o único altar que nos consola são ideologias que só têm este mundo para defender. A melhor eternidade que nos acode é o planeta que podemos deixar aos nossos filhos (e daí o novo vigor ecológico). Acho bem que o planeta seja defendido mas acredito em vida noutros planetas: o novo céu e a nova terra prometidos na Bíblia implicam que este nosso planeta vai tornar-se noutro ao ser renovado. Isto que aqui temos é para ser cuidado mas pode haver vida além disto.

O que é muito deste planeta é o medo que levou os meus amigos do Bloco de Esquerda a serem tão caguinchas como os do CDS. Novamente: eu, caguinchas-mor, me confesso. Mas anima-me a ideia de sermos levantados para vocações maiores. De que adianta fintar a doença se o campeonato ainda se joga no horror à nossa ausência de controlo? Uma das minhas tristezas, à medida que parece que vamos saindo dos piores dias desta pandemia, é estarmos todos mais treinados em que o mal não nos toque. Estamos muito inspirados em impedir o nosso erro e, mais implacáveis ainda, a querer impedir o erro dos outros. É espantosa a ditadura que escolhemos ao nos julgarmos tão talhados para não errar.

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