É impressionante como certas coisas, em si mesmas insignificantes, ficam guardadas na memória. Há muitos, muitos anos, o Expresso publicava uns inquéritos de Verão em que convidava certas individualidades a darem conta ao público do que aconselhavam como leituras de férias no manso repouso face ao mar. Duas das respostas nunca me saíram da cabeça. Uma, a de um poeta menor português, hoje já morto, sugeria a lírica de Camões. Outra, a da dirigente socialista Edite Estrela, então famosa por um programa televisivo em que introduzia a população aos envolventes mistérios da arte de falar correctamente português, recomendava “A origem da obra de arte” de Heidegger (além da escuta do Requiem de Verdi, que, sentiu-se na obrigação de explicar, preferia ao de Mozart).

Nada me move, é claro, contra qualquer destas obras, mas a ideia de voltar à toalha, depois de um mergulho, e de dar de caras com “Quando de minhas mágoas a comprida / maginação os olhos me adormece, / em sonhos aquela alma me aparece / que para mim foi sonho nesta vida”, ou “O que é, na verdade, uma coisa, na medida em que é uma coisa?” é uma ideia que não me parece particularmente sensata. Ler pela enésima vez as aventuras de Johnny Fletcher e de Sam Cragg a tentarem arranjar dinheiro para pagar o quarto de hotel parece-me francamente mais adequado ao tempo, ao lugar, e até, se me é permitido, à decência e aos bons costumes.

Senti-me na necessidade de oferecer esta breve introdução porque Agosto está aí e o meu assunto de hoje apresenta uma considerável elevação espiritual. Mas tenho uma desculpa de peso para tal elevação. Por um azar da vida, estou este Verão fechado em casa, a testar a minha fortitude, à espera de melhores dias, que ignoro por inteiro se virão. Para piorar tudo, a fortitude não é o meu forte e, como sempre, o pior é sempre o mais provável. Só resta mesmo a elevação.

Nisso, no entanto, sou, era o que me faltava ser modesto!, claramente imbatível. E passo as horas que o dia dura e as que a noite permite numa oscilação entre o sagrado e o profano. Mais precisamente, entre as cerca de duzentas cantatas sagradas que chegaram até nós de Bach e os aproximadamente seiscentos lieder que Schubert compôs. Como não gosto de fazer as coisas pela metade, tenho acompanhado a música com a leitura de dois livros escritos por grandes intérpretes de Bach e de Schubert: o Music in the Castle of Heaven, de John Eliot Gardiner (que gravou a integralidade das cantatas) e o maravilhoso Schubert’s Winter Journey. Anatomy of an Obsession, de Ian Bostridge (que cantou muitas obras de Schubert), o melhor guia que se pode imaginar para o célebre Winterreise e para os poemas de Wilhelm Müller. Voltei também ao The Romantic Generation, de Charles Rosen, e ao livro que o grande Dietrich Fischer-Dieskau consagrou aos lieder de Schubert a partir da sua inigualável experiência como intérprete de todas as canções para voz de homem. E li, é claro, os textos de grande parte das cantatas e dos lieder. Em intervalos pungentes e dilacerantes sonho com o mar e com montanhas. Mas a elevação, em todo o caso, nunca verdadeiramente me abandonou.

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Não há talvez lugar algum em que as significações imaginárias da fé cristã encontrem uma tão completa expressão sensível como nas cantatas sagradas de Bach, excepto, é claro, se pensarmos na Paixão segundo Mateus, que, permita-se o dogmatismo, não é apenas a mais grandiosa de todas as obras musicais: é a maior obra de arte que o espírito humano alguma vez criou. Quando o coro, no decisivo momento da escolha, grita Barabbam!, quem permanecer no seu estado normal e não for tomado de uma emoção vertiginosa em que o físico e o mental se indistinguem, não é, pura e simplesmente, um ser humano (pessoalmente, quando quero comparar diferentes interpretações da Paixão, vou directamente a essa passagem, que me serve como pedra-de-toque da interpretação da obra). Mas as cantatas, mesmo que não cheguem verdadeiramente nunca a atingir essa grandeza impronunciável, todas elas, embora em graus diferentes, ilustram magnificamente, combinando a tradição retórica sobre a qual assenta a música barroca com o génio inventivo de Bach, os aspectos decisivos da fé cristã, tal como eles são capturáveis por alguém que, mesmo ateu, tenha sido formado pelo cristianismo, como nós todos fomos.

Está lá o essencial. As paixões cristãs da tristeza e da alegria estão lá todas. A alegria da fé é real, tal como a tristeza da dor o é. Não há praticamente cantata que não exprima musicalmente o balanço entre ambas. Do lado da tristeza estão a dor, a morte, a angústia, o temor, a preocupação, a aflição, a agonia, os cuidados, a infelicidade e as lágrimas. Do lado da alegria, a que conduz o caminho da fé, através de uma transfiguração, estão a vida (a vida que traga a morte), o amor (a Deus e aos irmãos humanos – Gardiner tem óptimas páginas sobre isso), a bondade, a calma, a paz, a graça, a saúde, a salvação. O agente da passagem do primeiro grupo de paixões para o segundo é obviamente Cristo. Valeria a pena listar em detalhe as paixões, mas o que é mais impressionante é o modo como a música – digo bem: a música – de Bach torna sensíveis essas oposições. A coisa é de uma grandeza sem nome. Não se sai desta música como se era antes, há uma inteligibilidade das paixões que se ganha muito para lá do que a experiência comum permite. É como se elas nos fossem explicadas, ou, mais do que explicadas, exibidas com a evidência que só a maior arte permite. E, sendo uma música concebida para a glória de Deus, é, ao mesmo tempo, a mais humana das músicas, aquela que mais intimamente nos diz respeito.

Ian Bostridge escreve que, depois da última canção da Viagem de Inverno, Winterreise, o maior ciclo de lieder de Schubert, “o silêncio é palpável, a espécie de silêncio que de outra maneira só uma Paixão de Bach pode convocar”. Pura verdade. A ideia de ciclo (que, como Gardiner mostrou, é já, à sua maneira, instrumental na criação das cantatas de Bach) é fundamental na criação do lied romântico. Schubert, no seguimento de Beethoven (o Beethoven de An die ferne Geliebte) e antecipando Schumann, leva a ideia de ciclo à sua perfeição. É importante ter em consideração que, nos ciclos, como o nota Rosen, não há verdadeiramente uma narrativa (excepto, tardia e imperfeitamente, em Brahms), há apenas imagens entre as quais, mais ou menos inconscientemente, estabelecemos um nexo, expectativas para as quais não há preenchimento assegurado, para usar expressões que o filósofo Fernando Gil longamente desenvolveu. Tais imagens exprimem o culto romântico do fragmento e das ruínas, que são uma espécie de fragmentos póstumos.

Nos ciclos, como, de resto, em grande parte dos lieder de Schubert, a imagem da natureza é omnipresente. Ela ocupa, à sua maneira, o lugar de Deus nas cantatas de Bach. Há montanhas, rios e ribeiros, lagos, mar, árvores, bosques, florestas, flores, animais, lua, sol, estrelas, manhãs, entardeceres e noite e estações do ano (excepto, não tão surpreendentemente quanto isso, o Verão). Mas a natureza é consistentemente associada à imagem da amada ou do próprio sujeito que nela se vê reflectido. E o amor – Winterreise é talvez o melhor exemplo disso – à ideia de dor, duas paixões que vimos oporem-se em Bach e que música de Schubert não menos veementemente exprime. Schubert, de resto, estava plenamente consciente da coisa, tendo escrito: “Sempre que tentei cantar o amor, deparei-me com a dor. E, por sua vez, quando tentei cantar a dor, deparei-me com o amor.” A grandeza extraordinária da Viagem de Inverno tem, por isso, qualquer coisa de terrível. E, sendo terrivelmente humana, é, ao mesmo tempo, divinamente terrível e, provavelmente, muito mais religiosa, à sua maneira, do que as composições propriamente religiosas de Schubert.

O romantismo, que Schubert, sendo ainda, no essencial, um clássico, o último dos clássicos, antecipa, representa um dos momentos fundamentais da conceptualização da natureza. O romantismo alemão e o romantismo inglês (basta pensar em Wordsworth, que, além de tudo, foi um grande teórico do pitoresco na paisagem natural), mas também, embora em muito menor escala, o romantismo francês (Oberman, de Senancour, que inspirou um outro romântico, Liszt, nos “Anos de peregrinação”). (O “romantismo” de Schubert é, de facto, algo muito curioso: é como se uma expectativa (clássica) resultasse num preenchimento pleno, numa perfeita confirmação, mas tal preenchimento, tal confirmação, fossem diferentes do que seria mais natural, isto é, se dessem no interior de uma ordem já romântica. A criança não chega morta a casa, como no Rei dos Elfos, Erlkönig, de Goethe, musicado por Schubert. A expectativa não é frustrada, a criança é apenas diferente. Acontece na história da arte – e na vida.) Mas é uma natureza que se encontra investida, de uma forma ou de outra, pela presença humana. Se quisermos uma natureza concebida a partir de um movimento essencialmente inverso, tal como se revela numa poesia que só muito recentemente descobri, é ler os poetas chineses da dinastia Tang: Li Po, Tu Fu e Wang Wei, por exemplo. Aí, é o poeta que se identifica com a natureza – é uma montanha, é uma árvore -, não a natureza que serve de imagem na qual o poeta se revê. Dito isto, ambas as soluções são boas, e a grandeza da visão romântica da natureza permanece intocada.

Mas mais intocável do que tudo é a música. A música de Bach, escrita em glória de Deus, mas iluminando como nenhuma outra a natureza das paixões humanas, ou a música de Schubert, que alçou as paixões humanas a um plano de intensidade religiosa.

Não me queixo, por isso, destes dias enclausurados. Mas por vezes, confesso, sinto a falta da natureza imediata, e real da realidade habitual, do mar e das montanhas. Sente o meu espírito e sente o meu corpo. Em vez da elevação, queria o mergulho. E, já agora, sinto também a falta dos meus amigos Johnny Fletcher e Sam Cragg dos policiais de Frank Gruber. Este Verão lembra-me a primeira linha de Winterreise, só que aqui sem mistério nenhum: “Cheguei como um estranho, como um estranho parto.”