A razão de ser desta crónica nasceu em primeiro lugar de ler, há alguns dias, o que vai escrevendo o José Manuel Fernandes. Não se pode dizer que sou um fã, tenho seguido o que foi publicando desde a sua passagem pelo “Público”, quando enfim, eu, estagiário recém licenciado, auferia dois ordenados mínimos, vivia em casa dos pais e tinha liquidez para comprar o jornal diariamente, sem me preocupar muito com isso. Há pouco tempo, dei por mim a pensar junto com alguns(as) colegas mal pagos que, em termos nominais e absolutos, nunca recebemos tão bem como durante estágio profissional. Depois sempre nos pagaram abaixo das nossas qualificações, do valor real e da qualidade do trabalho que produzimos (situação que felizmente no meu caso mudou recentemente, tendência que espero se generalize).

Então, alguns dos meus camaradas – na época simpatizava com o Bloco de Esquerda (mais particularmente ligado a colegas de secundário do ex-PSR e, em Coimbra, do atual MAS) –criticavam-me leituras e comportamentos, digamos assim, de “desvio à direita” ou “burguesas”. Sempre gostei de ler autores com os quais à partida não vou concordar e não partilho idiossincrasias, os outros a priori estarão dentro da pluralidade da extrema esquerda, mais ou menos próximos da minha própria visão do que poderia ser o mundo se, efetivamente, houvesse um controlo do meios de produção por quem trabalha, uma “revolução universal e permanente”, a abolição dos estados-nação e um governo global. E, naturalmente, sem abolição da liberdade individual em prol da liberdade coletiva. Talvez assim, e só assim, aceite comumente por todos o “troskysquismo” fizesse ou faça sentido, embora já ninguém o reivindique deste modo. Por mim — com uma costela libertária e à maneira do banqueiro anarquista de Fernando Pessoa (1981) —, de certo modo provocando todos esses camaradas e os outros, que não vejo melhor solução para a utopia, desde que tal sistema não fosse totalitário, como os que venceram, na Rússia, em 1922, vieram a criar. À margem disso pratiquei o entrismo no PS, partido ao qual já estava ligado familiarmente desde os 5 anos. Hipocrisia por hipocrisia, prefiro ter mais possibilidade de influenciar o poder, dentro do espectro de tempo da minha vida útil. Servem estas “profissões de fé à partida” como declaração de interesses.

Outra declaração de interesses é que fui aluno do professor Vladimir Ilich Pliassov, a quem aliás, nas brincadeiras de estudantes chamávamos VIP, e tal com o professor Alexandre Franco Sá, pouco aprendi de língua russa, mas ficou o “bichinho” pela cultura, para ler para além os clássicos e do chamado realismo socialista ou soviético. Na minha parca convivência com o professor VIP, a quem aliás não vejo há anos, recordo o massacre de Breslan (2004), após o qual o Núcleo de Estudantes de Letras, com a presidência da Ana Luísa Santos, organizou uma vigília e acções de protesto contra o terrorismo e, relembro, vagamente, as suas palavras: «Se o terrorista tem problemas com o Governo, deve por bomba no Krelimn e não atacar a escola». De qualquer modo, errada ou não, das suas aulas colhi a plena sensação de em VIP imaginar um “último homem soviético”, tal como um década depois foi descrito no famoso ensaio (Aleksievitch; 2015).

Soviético, embora, moldavo, foi o meu colega de casa Misha, de quem nunca conheci outro nome. Teve um bolsa de quase 200 contos da Federação Russa, para doutoramento em química, mas como sempre vivera em cidades universitárias, onde nem cinemas havia para namorar, tinha poucas ou nenhumas competências sociais. Mal sabia gerir a pequena fortuna do seu vencimento, a meio do mês batia à porta do meu quarto e eu perguntava: “Já sem dinheiro outra vez? Precisas de tabaco?”. A nossa senhoria, a querida D. Rosa, passava-nos a roupa a ferro, deu-lhe sábias orientações para que se organizasse. A mim ensinou os perigos dos “cheques carecas” e mais lições práticas de economia do que muitos tratados. Ofereceu um bar a cada filho e fez crescer o seu negócio de arrendamento a estudantes, sempre de recibo passado, sem queixas contra a República. Misha, certa noite de boémia, virou-se para mim e para o Ricardo Carrilho: “quero-vos introduzir a duas russas”. Ficámos a rir desbragadamente pela natural brejeirice de uma tradução literal do inglês. Haverá sempre falhas de comunicação. Será que esta estória se pode contar, sem sermos os três rotulados de “machistas perigosos”?

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Mais ano menos ano, num bar da Alta de Coimbra, discutimos política e história. Misha dizia que a URSS apoiara a libertação das “ex-colónias portuguesas”, eu dizia que apenas as neocolonizara. Misha via diferenças entre a colonização de Angola pelos portugueses e colonização da Sibéria pelos russos. Mutatis mutandis, eu só via a diferença geográfica e o impacto do oceano numa, a ausência dele noutra. Largos anos mais tarde, julgo ainda ser a sua atual companheira, Misha conheceu e se encantou por uma macaense e deu-me razão, aliás estava quase um verdadeiro lusotropicalista, repudiando a poesia inerente do antigo hino nacional que celebrava a “pátria de Lenine” e “a libertação dos povos”.

Tudo isto vem a propósito de três considerações. Primeira: o elogio da vossa clareza numa linha editorial que assume um posicionamento político, sem trair a base axiológica do que é, e do que foi, o jornalismo e mantendo espaço para todos os tipos de opinião.

Segundo, a vossa simpatia, ao contrário de todos os outros jornais nacionais, em me responder, sempre que envio um texto dizendo que este está para análise, é raro, quase único. (Porém, neste casos convirá que a dita análise tenha mais celeridade, porque lá “se fossem uma empresa pública…”. Sem provocações, digam NÃO, aliás, se puderem digam francamente o porquê de dizerem que não, a todos aproveitará. A humanidade estaria melhor se todos soubermos dizer “Não”).

Terceiro, o caso do “saneamento político” do professor VIP, no lead de um dos vossos artigos noticiosos encarado mesmo como resultado de um “artigo de O Observador”. Este caso naturalmente parece muito grave face ao clima cultural assustador que vivemos de “sociedade do cancelamento”, que, muito bem, vós tendes noticiado e criticado.

Nesse artigo, não houve contraditório, não sei o porquê (o jornalista em causa ainda não respondeu ao meu email). Houve uma resposta à situação do professor VIP no Público, e verificou-se o que era óbvio: tratou-se de um despedimento sumário por delito de opinião. Aliás, se o professor VIP fizesse, à margem naturalmente do seu programa, apologia do regime de Putin, isso não o invalida para dar aulas de língua e cultura russas, de certo modo, aliás elas seriam mais honestas, assumindo esse exercício retórico. Apoiar a política de Putin (o que não é de todo o caso) não desqualifica a sua competência técnica e profissional. Isso parece-me evidente. Tal como um professor católico, ou de outra confissão, pode e deve defender a presunção de inocência de todos acusados de crimes sexuais, sem com isso compactuar com encobrimentos, e/ou ficar menorizado no seu magistério.

Como dou aulas na província e todos conhecem o meu passado político, abstenho-me de fazer declarações de interesses. Porém, naturalmente as minhas aulas de história contemporânea serão diferentes das do meu pai, das dos colegas Carlos Faísca, das da professora Augusta Damásio, ou das da saudosa Teresa Moreira, de tantos e tantos outros docentes que tive já no percurso universitário. São diferentes porque houve percursos de vida díspares. São diferentes porque há visões políticas do mundo distintas, são diferentes por há um interesse histórico e científico em temas díspares. Não se trata de doutrinar. Não se trata de um espúrio interesse estalinista em “reescrever a história”, mas da condição humana que na história (e/ou no jornalismo) por mais que busquemos imparcialidade e a objetividade, as circunstâncias, no sentido que lhe deu Engels, nos condicionam, consciente ou inconscientemente. Não há neutralidade num texto escrito.

Pese tudo isto “só não erra quem não faz” e esse é motivo fundamental, na linha que o “Observador” nos tem a habituado ainda espero uma entrevista, um espaço concedido ao professor VIP para que se possa explicar, no mínimo semelhante ao da crónica original e da notícia que lhe seguiu após o despedimento sumário. Também falta ouvir as razões do Reitor, que com esta atitude, para mim de Magnífico, não tem nada. E, em breve, vou-lhe devolver o cartão de Alumni que fez a amabilidade de me enviar, justificando isso.

Há um princípio pelo qual levei socos da polícia em 2004, não era apenas o do ensino superior gratuito livre e universal, era também o mais antigo da autonomia universitária, o mesmo conceito que levou Marcelo Caetano a demitir-se em 1962 e o, qual, na época o JN me concedeu uma página, para que pudesse explicar as minhas divergência com o então Reitor Seabra Santos (com quem tenho mais proximidade política do que com Alves Caetano), mas não posso tolerar a chamada da polícia para a universidade para responder a protestos estudantis.

Joaquim de Carvalho (1892-1958), a propósito da proposta de extinção, por motivos políticos, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e sua transferência para o Porto escreveu o seguinte: «[…] Converter as Universidade em organismos políticos, no correntio e jornalístico sentido da palavra, sôbre ser uma monstruosidade pedagógica, é um crime nacional e um atentado à razão. Sob essa aparência de convergência de opiniões esconder-se-há o cancro que corroerá a cultura. Que a república se defenda, é justo; mas quando essa defesa vicia a atmosfera serena da cultura, estrangulando ou cilindrando o espírito, que é independência e liberdade, é abominável, tanto ou mais do que roubar a vida. […]» (Carvalho: 1919, p.15)

Tratava-se do ambiente de revanche, dos “governos da desforra”, subsequentes à “República Nova”. Joaquim de Carvalho, solidarizou-se com os seus colegas da Faculdade de Direito, sindicados por motivos políticos, dos quais, por motivos óbvios, o mais famoso é hoje António Oliveira Salazar (1889-1970). Depois, em 1935, um dos expoentes máximos da filosofia em português, foi ele próprio aposentado compulsivamente e afastado da universidade, por se recusar a trair os seus princípios, perante a célebre lei contra as sociedades secretas. Ontem como hoje, a ingratidão, dos sete pecados mortais, é o oitavo.

No filme de Martin Scorcese, a personagem da criminalista e agente do FBI conta ao psicopata como os carneiros no matadouro morriam e ninguém os ouvia. Assim se tornou “sociedade da informação”, na “sociedade do cancelamento”. Culpados ou inocentes, justos ou ímpios, depois de “atirada a primeira pedra”, só têm direito ao silêncio.

Referências:

Aleksievitch, Svetlana (2015), O Fim do Homem Soviético, Porto: Porto Editora.
Carvalho, Joaquim de. (1919). A minha resposta ao último considerando do decreto que desanexou a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Coimbra : [Tip. F. Amado,], p.15
Pessoa, Fernando (1981), O Banqueiro Anarquista, Lisboa: Antígona.