1O título chamou a sua atenção, caro leitor? Então começo por dizer-lhe: não, não fique preocupado que não defendo o regresso da ditadura. Defender o fim da presunção da inocência absoluta não significa defender o fim do Estado de Direito. Pelo contrário, significa assegurar um efetivo aprofundamento desse mesmo Estado de Direito através de um equilíbrio mais justo entre os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e o direito de punição do Estado em nome de uma sociedade justa e equitativa.

Precisamente porque existe a perceção de que a ideia de Justiça está hoje em dia em profunda crise. Mais do que nunca. E isso é devastador para a Democracia.

Só a simples perceção — profundamente enraizada na sociedade portuguesa — de que existe uma Justiça para ricos e outra para pobres  — coloca em causa uma das ideias fundadoras do regime democrático: a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, independentemente da sua influência política, económica e social.

Quem se recusa a perceber isto, enfiando a cabeça na areia, está a agravar a crise da democracia representativa.

2Vem tudo isto a propósito da fuga de João Rendeiro — que suscitou, e bem, um clamor de indignação na sociedade portuguesa. Verdade seja dita que já há muito tempo, desde a década de 2000, que não tinhamos um foragido à justiça mediático. Isaltino Morais, Armando Vara, José e Paulo Penedos, Domingos Paiva Nunes, além de presos preventivos e domiciliários como José Sócrates, Ricardo Salgado e Luís Filipe Vieira, entre outros — nenhum deles fugiu.

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Mas nenhum deles fugiu. No caso em apreço, além da vontade do próprio arguido condenado a três penas de prisão efetiva — sendo que apenas uma delas, de cinco anos e 8 meses de prisão, transitou em julgado —, o mesmo teve todo o tempo do mundo para planear a fuga com toda a calma. Como?

  • Jogou com todos os formalismos que a lei lhe oferece. Como apenas tinha de comunicar os locais para onde viajava — sabendo de antemão que ninguém iria verificar para onde ia —, foi gerindo os prazos dos recursos, das reclamações e de todos os expedientes dilatórios que a lei permite. Contratou um advogado a 25 de agosto (Carlos do Paulo) supostamente especializado em processos de extradição e viajou mais de 30 dias para a Costa Rica, provavelmente para planear no local a sua fuga. A poucos dias do trânsito em julgado, fugiu.
  • A partir do momento em que a investigação termina com uma acusação, os arguidos da criminalidade económico-financeira costumam ter apenas a medida de coação mais ligeira (o termo de identidade e residência). Raramente têm de entregar o passaporte, logo ficam livres para viajarem para onde quiserem.
  • Mesmo com três penas de prisão efetiva, sendo que apenas uma delas já transitou em julgado, é igualmente raro que o Ministério Público promova a retirada do passaporte ou a prisão preventiva do arguido, sendo que os juízes de primeira instância, os desembargadores das relações ou os conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça ou do Tribunal Constitucional não têm qualquer cultura de pro-atividade neste tipo de matéria.

Resumindo e concluindo: temos um sistema judicial muito permissivo, sendo que é fácil aos arguidos abusarem dos direitos que a lei lhes confere. Um dos melhores exemplos disso mesmo é o facto de Rendeiro ter viajado para a Costa Rica, dando a morada do consulado de Portugal naquele país como ponto de contacto — em vez de dar a morada exata do hotel ou da casa onde se hospedou, como a lei obriga. Como ninguém reparou, repetiu a brincadeira quando fugiu para Londres.

Isto é imagem perfeita de um sistema judicial burocratizado que não reage perante sinais tão simples como um arguido dar uma morada de uma representação diplomática não sendo diplomata, nem tendo acesso às instalações.

3

O que podemos e devemos fazer? Podemos e devemos criticar as omissões e a passividade no sistema judicial, como acabei de fazer acima. A crítica e o escrutínio opinião pública só faz bem às magistraturas — pouco abertas ao mundo exterior por definição. Mas isso não resolverá o problema estrutural da falta de eficácia do sistema.

O caso BPP é, entre muitos outros, mais um exemplo de morosidade da Justiça. Estamos a falar de factos que ocorreram até 2008, logo os crimes terão sido praticados há mais de 13 anos. E só um dos processos com pena de prisão efetiva (o caso da falsificação da contabilidade) transitou em julgado. Este é só mais um dos inúmeros casos de criminalidade económico-financeira em que a responsabilização penal definitiva só chega ao fim de mais de 10 anos. Isso inadmissível.

Em nome da sua própria sustentabilidade e longevidade, a Democracia tem de combater a criminalidade económico-financeira em tempo útil e de forma eficaz. Podemos (e devemos) criticar o Ministério Público por apostar excessivamente em mega processos (para os quais o nosso processo penal não está preparado), podemos (e devemos) problematizar a existência da fase de instrução criminal e podemos (e devemos), discutir o nosso sistema de recursos excessivamente garantisticos, com todos os expedientes dilatórios permitidos.

Podemos (e devemos) fazer tudo isso. Mas há uma coisa sem qual nada disso fará sentido: o fim da presunção de inocência absoluta. Isso é essencial para que o nosso sistema ganhe eficácia — eficácia essa que recuperará a credibilidade perdida.

4 Ou seja, a presunção da inocência deve existir apenas e só até a determinada fase processual, finda a qual a pena de prisão efetiva, se existir, deverá ser executada. Pode e deve existir durante a investigação, a instrução criminal e julgamento. Mas após a conclusão da matéria de facto — que no nosso sistema equivale a uma decisão de um tribunal da relação —, o arguido deixa de presumir-se inocente e a pena é executada.

Como o Nuno Gonçalo Poças analisou neste trabalho publicado no Observador, a Alemanha e a França deixaram cair essa ideia de presunção da inocência absoluta em determinadas circunstâncias para que seja possível executar as penas antes do trânsito. E não deixaram de ser democracias avançadas e estados de direito de referência.

Essa é uma alteração estrutural do nosso sistema penal que levantará sempre muitas resistências na comunidade jurídica mas sem a mesma não será possível pensar em instrumentos realmente eficazes que ajudem a reduzir drasticamente a perceção de que existe uma profunda desigualdade no acesso ao direito.

Não tenho dúvidas de que a breve prazo vamo-nos confrontar com essa necessidade. Até porque o futuro dos casos do Universo Espírito Santo e Operação Marquês a isso vão obrigar. Tratam-se de dois processos que se irão arrastar durante muito tempo nos nossos tribunais, entre julgamentos morosos e recursos infindáveis. E que poderão levar o regime democrático a tomar medidas ainda mais drásticas do que as soluções que apresentei neste artigo e noutros (ver aqui, aqui e aqui, entre outros.)

Esperemos que esteja errado e que o sistema atual consiga encontrar soluções. Provavelmente, é um otimismo tão irreal quanto o do primeiro-ministro António Costa.