O sistema educativo está doente e isso prejudica os nossos jovens. Mas a doença a diagnosticar é mais grave e mais abrangente. Se a sociedade é o corpo, o sistema educativo é apenas um dos órgãos. O sistema educativo funciona mal porque somos cada vez mais uma sociedade sem valores nucleares claros e sem objetivos estratégicos bem definidos. Não sabemos claramente o que queremos e usamos o falso positivismo como capa, e a imprevisibilidade do futuro como desculpa para ir perpetuando este estado de coisas.

Os alunos estão viciados em notas e elas inibem o desenvolvimento de talento deles. Quando dizemos sistematicamente às nossas crianças e jovens, durante quase vinte anos, que a medida do seu desempenho como ser humano é o valor numérico que vão obter na próxima classificação, é natural que o cérebro deles se desenvolva para perseguir este objetivo. Todos queremos ter um sentimento de aprovação e as classificações oferecem essa gratificação imediata. Coisas como aprendizagem, desenvolvimento pessoal, crescimento interior, ética, moralidade, pensamento crítico, criatividade, proatividade e tantas outras coisas que são a chave do futuro passam rapidamente para segundo plano. Porque tudo o que interessa é a nota no próximo teste. Mais grave ainda é o efeito colateral que isto induz. Quem não encaixa nesta bitola específica começa a interiorizar que não tem valor. É incalculável a quantidade de talento que estamos a perder por esta via.

Acredito num sistema educativo onde o percurso dos alunos seja, de facto, feito de escolhas, diariamente. Mas isso é precisamente a única coisa que não deixamos os alunos fazer. Ou estamos a chamar “escolhas” à opção por uma língua estrangeira de vez em quando e à decisão bastas vezes inconsciente de crianças de 14 anos que, à saída do 9.º ano, são obrigadas a fazer um compromisso que lhes vai afetar seriamente o resto do percurso sem terem capacidade ou informação adequadas para a fazer? Temos que os deixar fazer escolhas com muito mais frequência. Diariamente. É assim que se fazem bons decisores. Dando espaço para a tomada de decisão responsável. Esse espaço não existe. Temos que deixar os jovens experimentar fazer coisas. Para que possam descobrir os seus talentos e capacidades. Mas não é possível experimentar coisas se estamos sempre trancados na sala de aula a receber os santíssimos sacramentos, certo?

O sistema de avaliação aliena os alunos da realidade e torna-os avessos ao risco. Se erras, és penalizado na classificação. És mau. Então começas a preferir não arriscar porque se não arriscares, não erras. Mas como não te habituas a correr riscos, tornas-te cada vez mais inseguro quando é necessário fazê-lo. A escola afastou-se demasiado da estrutura da realidade. E os alunos olham para a escola e não sentem que esta os esteja a preparar para o mundo que veem cá fora. Quando entram numa sala de aulas, perdem o acesso às ferramentas com que estão habituados a funcionar. Para ajudar, os assuntos que estão em cima da mesa são, normalmente, desinteressantes, e, bastas vezes, desajustados do mundo real. Acredito que muitos não gostam da escola e não é porque seja difícil. Bem trabalhadas as motivações, todos gostam de um bom desafio. Por uma razão bem mais simples. Por ser uma seca. Estamos a matá-los de tédio.

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Os alunos deveriam poder escolher as competências que pretendem desenvolver de entre um mapa bem definido, mas aberto. Defendo um sistema baseado nos valores da liberdade, responsabilidade, autonomia, criatividade e entreajuda. Pode e deve haver avaliação, o que é diferente de haver uma classificação, seja ela qualitativa ou quantitativa. No fundo, tenho a visão de um sistema de ensino que promove um ser humano autónomo e consciente dessa autonomia, que lhe permite gerir e organizar o seu próprio tempo, a suas redes com os outros e o seu plano de desenvolvimento pessoal. Sem organizações arbitrárias como a turma e a idade e ao mesmo tempo que se responsabiliza por essas escolhas. Porque é precisamente isso que terá que fazer durante o resto da sua vida.

Não aceitemos uma defesa da igualdade baseada no princípio de que somos todos iguais. A igualdade tem de partir da evidência de que somos todos diferentes. O preço da conformidade é demasiado alto no futuro que nos espera. A conformidade esmaga o talento individual e a diversidade, que sempre foi o grande segredo da natureza para a sobrevivência coletiva em condições adversas. Não aceitemos o falso positivismo que tem predominado como peneira para tapar o sol. As mudanças que são necessárias requerem ação concreta, urgente e abrangente.

Se estás a ler isto e és aluno, no meio de toda esta confusão, deixo-te esta sebenta: segue o teu coração. E com isto não quero defender aquela ideia idílica de que tens que descobrir a tua paixão e ir atrás dela. De que há uma escolha certa em cada momento da tua vida e que tens de descobrir qual é. Não é assim que as coisas funcionam. Faz coisas. Muitas e diferentes. Empurra-te frequentemente para fora da tua zona de conforto. Fora dessa zona é que há crescimento, descoberta, exploração. E é assim que vais encontrar as coisas que gostas de fazer. Fazendo. Explora o que o teu coração te pede. Usa-o como bússola. Isto não quer dizer que deves fazer só coisas de que gostas. Isso é viver no mundo dos unicórnios. Quase sempre, fazermos as coisas de que gostamos implica fazer outras de que não gostamos. Tens que ter essa resiliência. A felicidade não vem de uma vida sem problemas, igualmente vazia de significado. Olha para dentro. Redefine continuamente o que para ti é importante e não deixes que te demovam desse conjunto de valores. A escolhas não são pontos de chegada. São pontos de partida. Alivia a pressão. Os outros não sabem o que é melhor para ti. As decisões são tuas e tu é que vais ter que viver com elas. Acredita em ti e nos teus valores. É assim que te vais construir como pessoa. Fazendo, errando, responsabilizando-te pelas tuas próprias escolhas e aprendendo com elas. Lê mais. Escreve mais. Cuidar da linguagem é cuidar do pensamento. E, acima de tudo, fica bem. Este é o meu currículo.

Professor no Agrupamento de Escolas de Cister, em Alcobaça. Professor Finalista do Global Teacher Prize Portugal 2021

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.