Snobismo cronológico era o que o C. S. Lewis chamava à “aceitação acrítica do clima intelectual da nossa época, e a assunção de que, seja o que for que já tenha passado, está por conta disso mesmo desacreditado”. Se formos sinceros, e reconhecendo que nunca antes na história do mundo foi tão fácil saber o que os antigos pensavam, a facilidade da nossa informação sobre o passado é proporcional ao desprezo que lhe temos. Quanto mais conhecemos os que nos antecederam, mais superiores nos sentimos em relação a eles. O sabedor é um snob—eis um diagnóstico a ter em conta acerca de nós em 2022.

Pensemos no assunto da pobreza, por exemplo. Gostamos de nos considerar mais preocupados com a pobreza do que qualquer época que chegou mais cedo. E, nessa pressa típica que têm as pessoas seguras das suas virtudes, tomamos o pobre de hoje como o pobre de ontem, como se o tempo a passar não mudasse nada nos próprios conceitos. Quando se gasta tempo a ler literatura antiga, chega-se com frequência à conclusão que as mesmas palavras podiam ter significados não completamente coincidentes com os de agora. Para mim, que me obceco com a Bíblia, descubro que o pobre nessas páginas é mais do que apenas a pessoa de poucos ou nenhuns recursos económicos. Como é razoável esperar da literatura religiosa, ela trata a pobreza como uma condição também espiritual.

O pobre, como hoje é genericamente entendido, sobretudo de uma perspectiva material, é um conceito recente. Nessa medida, iria mais longe e acrescentaria que o pobre de hoje tende a suscitar a nossa simpatia precisamente pelo facto de não ser o pobre de ontem. Quando o pobre de hoje corresponde ao pobre de antigamente, são poucos os que desejam ser vistos como preocupados em ajudá-lo. Pelo contrário, promoveriam a maior distância dele. Quem é então o pobre de ontem, para que nos desagradasse hoje ajudá-lo?

Antigamente, e por conta de haver menos pudor em encostarmos as melhores explicações acerca do Universo à religião, a distância entre pobreza e maldição era curta. Por conta disso, o pobre era a pessoa que os acontecimentos não favoreciam muito provavelmente por estar a colher o que semeou. Desde que o mundo é mundo que o “instant karma” é uma convicção generalizada. Nas civilizações arcaicas a pobreza era, inevitavelmente, um sinal de algum tipo de retribuição cósmica, estivesse ela mais ou menos relacionada com a acção divina. Nesta medida, era pobre quem merecia pobre ser. Passar pela maldição de não ter era ter alguma responsabilidade nisso.

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O pobre de hoje é uma criatura diferente. O pobre de hoje facilmente se torna uma romantização da ausência da responsabilidade que antes lhe era pedida. O pobre de hoje é fundamentalmente alguém que não tem culpa do pouco que tem, porque o pouco que tem tem a ver com fundamentalmente tudo excepto ele (entra a causa sistémica). O pobre de hoje é tão facilmente amado pela razão de não ter quase nada a ver com o pobre de ontem: o pobre de hoje é visto como um inocente na mesmíssima proporção em que o pobre de ontem era visto como um culpado.

Qual é uma das implicações práticas disto nos nossos dias? As pessoas que hoje exprimem amor aos pobres podem, em comparação com o passado, não exprimir essencialmente nada além do amor aos inocentes. Nessa medida, amar o pobre, sendo amar o inocente, não acarreta nenhum tipo especial de empenho. Naturalmente amaremos todos os que nos parecem livres de culpa. Um inocente merece-nos condenação? Dificilmente.

Mas o pobre de antigamente era visto como mais próximo da culpa do que da inocência. Pobreza era uma espécie de maldição merecida. Amar os pobres era realmente contra-intuitivo porque geralmente não é atraente amar culpados. Daí o impacto das palavras de Jesus no Sermão do Monte (em Mateus 5:44-47) que, não sendo especificamente acerca da pobreza, a ela também se podem aplicar: “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo?” Dá vontade de parafrasear: amar os nossos, que temos como tão bons como nós? Parabéns! Que tal amar os que já se estão a dar mal por parecerem as bestas que eventualmente são?

É por isso que me inquieta tanto o amor automático pelos pobres. Quando eu próprio, tomado de escrúpulos e bons sentimentos, dou por mim a tão justificadamente amar o pobre não posso, ironicamente, estar a amar-me a mim mesmo a partir de uma idealização da minha própria inocência que, neste caso, estendo ao outro? E o assunto pode ser virado de pernas para o ar: se eu pensar que maldito é o rico, amar o rico hoje torna-se a actualização inesperada de amar o pobre antigamente. Se amar o pobre no passado corresponder efectivamente a não cultivar a indiferença por alguém que me suscitava algum tipo de justa repugnância, então amar hoje quem mais me repugna poderá corresponder ao valor que estava em causa quando antes se amava um pobre.

Resumindo muito a lição para nós, snobes que julgam amar os pobres: diz-me quem te repugna e dir-te-ei quem é realmente o pobre para ti.