1 A missão do SNS

A grande ambição para o SNS surge ainda no regime anterior ao 25 de Abril através da famosa “Reforma de Gonçalves Ferreira” de 1971 que promulga a organização do Ministério da Saúde e Assistência e é lançada pela criação do SNS através da Lei 56/79 que a explicita bem claramente: “o Estado assegura o direito à proteção da saúde, nos termos da Constituição” sendo consabidos os benefícios vastos e importantes, desde a redução da mortalidade infantil ao acréscimo da esperança de vida, que Portugal ficou a dever ao SNS.

Todavia, e como é evidente, o mundo da Saúde mudou radicalmente, não só graças ao avanço da Medicina, das Bio-Ciências, das Engenharias e Tecnologias, mas também devido à consolidação da Economia de Mercado e às melhores condições de vida e de habitação dos cidadãos com melhores níveis de educação e outras ambições profissionais mais diversificadas e internacionalizadas, designadamente no que respeita a todos os profissionais de Saúde.

Eis porque não é realista admitir que o modelo institucional,orgânico e organizacional da década de 70 será o mais apropriado para prosseguir atualmente o mesmo grande objetivo constitucional de não excluir ninguém do acesso a bons cuidados de Saúde sem os bloqueios, encerramentos e congestionamentos vividos atualmente.

2 A aposta exclusiva no Estado Central

A atual política tem-se centrado na aposta no SNS enquanto organismo público do Estado central dedicado à oferta da Saúde considerando-se a restante oferta que inclui os setores regionais,municipais, da solidariedade social, das associações culturais, profissionais ou sindicais não lucrativas e das entidades privadas com fins lucrativos como algo a que só se deve recorrer em casos de extrema necessidade. Tal orientação consta da atual Lei de Bases, foi exemplificada na pandemia COVID19 e é bem sintetizada pelo famoso slogan: “a Saúde não deve ser negócio”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ora, as necessidades em Saúde são cada vez maiores e mais complexas e o SNS como projeto profissional tem vindo a tornar-se menos atrativo pelo que qualquer observador independente constata viver-se círculo vicioso acelerado em que a perda de condições profissionais agudiza a escassez com maiores números de vagas por preencher o que, por sua vez, causa maior esgotamento dos serviços e afasta ainda mais os bons profissionais, designadamente jovens com mais ambições.

Como é evidente, sempre que se pretenda garantir o acesso gratuito aos cuidados de sáude não prestados pelo Estado central, este deverá negociar bem os correspondentes contratos de fornecimento financiando o seu custo de modo a sua gratuitidade a todos os beneficiários.

Importa observar que esta orientação visando “excluir” o privado tem tido os efeitos opostos acelerando o seu crescimento rápido e até artificial através de quatro tipos de acelerações da privatização da Saúde em Portugal:

  • cresce a carga laboral de profissionais disponibilizados efemeramente por empresas privadas, em quadros descoordenados funcionalmente e com regimes remuneratórios fragmentários;
  • cresce a dimensão do setor privado sendo atualmente o número de camas hospitalárias em unidades não do SNS superior ao deste;
  • acelera a dimensão da população com seguro de Saúde aproximando-se já dos 40%;
  • -aumenta a fatura de aquisição de meios e equipamentos vendidos por empresas privadas devido à sua sub-utilização bastando referir que os meios mais dispendiosos são usados frequentemente menos de 6h por dia no SNS enquanto noutras geografias como as nórdicas atingem-se as 12h.

Em suma, difícil seria imaginar uma política que mais aumentasse a importância do setor privado na Saúde em Portugal e que menos garantisse a universalidade dos bons cuidados acentuando-se o fosso entre os 40 % com seguro e os 60% sem seguro o que configura desrespeito evidente pelo princípio constitucional.

3 Que novas orientações?

Embora se multipliquem as críticas relativamente à situação atual , poucas orientações alternativas têm sido propostas pelo que aqui se apresentam propostas baseadas na conceção moderna dos sistemas de Saúde os quais se alicerçam em seis anéis de serviços policênticos essenciais à prossecução da sua missão :

Rede Primária: esta rede deve garantir os programas preventivos e os cuidados primários sendo vantajoso ter natureza pública mas mais relacionada com o poder autárquico do que com o Estado central. Esta rede deve ter elevado grau de capilaridade de modo a estar sempre perto de cada cidadão e a sua natureza pública evitará as assimetrias entre áreas mais ricas e mais pobres. Claro que os atuais centros de Saúde não podem desempenhar esta missão enquanto tiverem o horário de repartição pública do Estado central e não dispuserem de simples kits para realizarem as análises principais ou o equipamento básico de Raio X.

Rede de Hospitais de Proximidade (ou de Dia): este segundo anel é fundamental na terapêutica de pequenas enfermidades ou no encaminhamento dos doentes para centros mais especializados.Esta é uma das tipologias em que o setor privado mais tem apostado com unidades muito distribuídas pelas zonas mais populosas graças à ausência de iniciativas do Estado central cujo imaginário se baseia apenas no super-hospital (Todos os Santos, etc). Felizmente o poder autárquico está a despertar para esta necessidade podendo citar-se como bom exemplo o novo hospital de Sintra promovido e financiado pelo município de Sintra.

Rede de Hospitais Principais: este sistema inclui unidades de grande dimensão e oferta diversificada incluindo atualmente grandes unidades públicas como os Centros hospitalares de Lisboa, Coimbra ou Porto mas também conhecidos hospitais de grupos privados (CUF, Luz, Lusíadas, etc). A crescente especialização e diversificação dos cuidados de Saúde pode aconselhar a não se querer ser os melhores em tudo e então contratos de complementaridade podem ser vantajosos. Parece preocupante que a atual certificação de hospitais em Portugal pelas principais Agências internacionais se limite a um grupo privado.

Rede de Hospitais Especializados: estes hospitais dedicam-se a enfermidades e especialidades específicas, podendo, em Portugal citar como bom exemplo os oncológicos e é provável que a melhor estratégia seja apoiar e financiar as equipas mais competentes e especializadas em cada domínio, sejam do estado central ou não.

Rede de Cuidados Continuados: o acréscimo da esperança de vida e a evolução das terapêuticas continuadas exigem crescimento acelerado desta rede havendo evidências que não recomendam alicerçar-se no Estado central mas sim nas outras instituições, regionais, das autarquias, de solidariedade ou privadas.

Cuidados Domiciliários de Saúde :o enorme progresso das tecnologias digitais e dos diversos instrumentos terapêuticos permitem que muitos dos cuidados de saúde sejam prestados nos domicílios dos doentes, não só em continuidade mas também para acudir a crises do doentes crónicos conseguindo-se, por vezes, taxas de sucesso muito elevadas. Em Portugal, exemplo de boa prática são os Cuidados Respiratórios Domiciliários cuja experiência deveria ser alargada a outras terapêuticas. Estes cuidados exigem logísticas e modelos de funcionamento empresariais pelo que devem ser prestados pelo setor privado sob contratação e financiamento públicos. O desenvolvimento desta oferta permite a chamada “deshospitalização” da Saúde a qual beneficia os doentes e, não menos , os hospitais e seus profissionais pois descongestionam o seu funcionamento.

4 Conclusão

A reflexão independente e atualizada sobre os modernos sistemas de Saúde permite concluir que qualquer política considerando apenas como desejável a oferta gerida pelo Estado central está condenada ao fracasso pois a complementaridade entre os diversos protagonistas é essencial mas é provável que os dirigentes políticos mais limitados pelos dogmas ideológicos teimem na sua exclusividade o que, aliás, parece também estar a confirmar-se com as resistências e dificuldades vividas na própria descentralização administrativa em curso e no não co-financiamento dos investimentos autárquicos em Saúde.

Todavia, mesmo sem quebra de tais dogmas talvez possam compreender que se pretenderem, por exemplo, mitigar o drama das urgências, a solução não será privatizarem cada vez mais os seus profissionais através de empresas de serviços temporais e efémeros ou aumentar os volumes de horas extraordinárias que irão acelerar o colapso do SNS mas sim apetrechar os centros de saúde e as unidades de saúde familiar e garantirem horários de funcionamento alargados incluindo fins de semana em vez do atual horário de repartição pública do século passado.

Declaração de interesse : O autor tem contribuído sob contrato para entidades públicas e privadas no domínio dos cuidados de saúde domiciliários.