Há um certo número de condições necessárias para que um juízo político tenha lugar e, se essas condições não são satisfeitas, o juízo político não passa de uma fantasmagoria. Não pretendo aqui fazer a lista de tais condições, apenas notar duas que me parecem particularmente salientes: o sentimento de compaixão para com o sofrimento alheio e a sensibilidade bastante para distinguir a verdade da mentira.

São apenas duas das condições do juízo político, como acabei de dizer, mas são condições fundamentais. A insensibilidade ao sofrimento alheio e a incapacidade de distinguir a verdade da mentira designam uma patologia do comportamento político. Quem é incapaz de proceder a esse duplo reconhecimento sofre indiscutivelmente de um problema de cognição política.

Estas condições são, num certo sentido, pré-políticas. Referem-se a um fundo humano que precede o juízo político propriamente dito. A indiferença para com o sofrimento alheio e a incapacidade de distinguir o verdadeiro e o falso verificam-se na vida comum de múltiplas maneiras. Mas, quando transportadas para a vida política, ganham obviamente uma dimensão nova. Quanto mais não seja, porque o sofrimento passa a encontrar-se exposto aos olhos de todos e a mentira salta aos olhos com uma evidência irrecusável.

Isto que acabo de dizer vale para a vida política em geral. Mas vale certamente com mais força para os casos de agressão em grande escala, sobre os quais dispomos de abundante e constante informação. Vale nomeadamente para a invasão russa da Ucrânia e para tudo o que se lhe seguiu.

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Houve certamente muitas coisas que me surpreenderam desde o início da invasão. A maneira como ela escapava a hábitos que dávamos por adquiridos. A brutalidade russa. A tentativa de destruição sistemática de um país a mando de Putin. A extraordinária tenacidade dos ucranianos em defenderem a sua pátria e o exemplo de coragem e perseverança em que Zelensky, desde o primeiro momento, se tornou. O sucesso na resistência ao invasor. E por aí adiante.

Mas, confesso, o que, num certo sentido, mais me surpreendeu, foi a reacção de vária gente a tudo isso. Não a reacção, sublinho, de muitos russos. Que seria de esperar de uma grossa fatia de um povo que não conheceu, ao longo da sua existência, nenhuma contribuição para a história da liberdade que é constitutiva do chamado Ocidente? E que não conheceu nunca, permito-me acrescentar, qualquer tradição filosófica digna desse nome, que, desde os Gregos, foi constitutiva da experiência ocidental da liberdade? A indiferença para com o sofrimento alheio e a incapacidade de distinguir a verdade da falsidade encontram-se inscritas nesse modo multisecular de ser, no conjunto das significações imaginárias sociais, como diria um filósofo, que fazem parte daquela sociedade.

O que me surpreendeu realmente foi a reacção de alguma gente no Ocidente e particularmente em Portugal. O sofrimento da população ucraniana é como se não existisse ou como se fosse o fruto da acção dos seus líderes, ou do Ocidente através deles, sendo a invasão russa a consequência estrita dessa mesma acção. Não ver o sofrimento que toda a gente vê, não ver as suas causas, que estão dispostas ao olhar de todos, releva de uma patologia moral magnificada em patologia política.

O mesmo se dirá da incapacidade em reconhecer a colossal e sistemática mentira que salta aos olhos em tudo o que vem da Rússia de Putin, desde o argumentário para a invasão e do nome – “operação militar especial” – escolhido para a designar até aos recentes referendos nas zonas ocupadas pelos russos, passando por tudo o que ocorreu entre uma coisa e outra. Não se medita suficientemente sobre a corrupção do espírito que preside a essa cegueira face à mentira. Volto ao que disse atrás: há uma patologia moral que se desdobra numa patologia política.

Estamos muito longe do conflito de argumentos que é constitutivo da vida ética e política. Só na aparência se pode julgar que o que temos face a nós prolonga tal conflito. Na verdade, trata-se da negação do fundo racional comum, por mais aproximativo que seja, que subjaz a esse conflito. O poder de não ver – a alucinação negativa que nos impede de ver o copo que está, ao olhar de todos, pousado sobre a mesa – releva de uma patologia singular para a qual não parece haver cura possível.

A incapacidade de distinguir a verdade da falsidade, no caso em que a distinção não oferece o mínimo vestígio de dúvida, é talvez o exemplo por excelência de uma má-fé que tomou conta do ser na sua integralidade. Face a um tal grau de má-fé, confinando com a loucura, toda a conversa se torna impossível. Resta a repugnância que se sente por quem se coloca decididamente fora do patamar da decência humana.