No outro dia, vi um vídeo em que o músico pop Roger Waters, durante o concerto em S. Paulo, começou a comparar Bolsonaro a Hitler, com imagens projectadas num ecrã e tudo, e a pretender guiar os muitos milhares de pessoas que ali se encontravam no caminho do Bem. A falta de respeito pelos brasileiros que o exercício demonstrava foi largamente retribuída com uma monumental vaiadela que o calou durante o tempo suficiente para uma pessoa normal pensar se a profissão de missionário lhe convém verdadeiramente.

Duvido que tal tenha passado pela cabeça do indivíduo em questão. Roger Waters é um veterano destas coisas e um notório especialista de apelos a boicotes a Israel (não falha um). Ocupa um lugar de relevo naquela vasta galeria de estrelas que não resistem ao lendário reflexo Miss Mundo: não pára de querer coisas para a humanidade que julga tão bem representar. Vaias e insultos não o incomodam. A conversão dos incréus acabará por vir, a bem ou a mal, e o risco de acabar deglutido como o Bispo Sardinha é agradavelmente reduzido.

Roger Waters não conta para nada, é claro, a não ser como exemplo. Exemplo, sem dúvida, da típica arrogância e do delírio de virtude da esquerda, uma arrogância e um delírio que eu sou suficientemente velho para me lembrar que em tempos eram frequentemente exibidas pela direita. Hoje em dia, a esquerda tomou-as como uma propriedade quase exclusivamente sua. Mas sobretudo exemplo de uma impossibilidade quase ontológica de se pôr no lugar do outro e de tentar compreender as suas escolhas, ou mesmo de reconhecer real existência espiritual a quem pensa diferentemente. Os missionários de esquerda vivem isolados do mundo numa bolha que generosamente lhes permite uma espécie de solipsismo colectivo. Só eles, como um todo, existem, só eles são dotados de alma. No exterior, o Mal, que, como se sabe, é índice de não-existência.

O que espanta em tudo isto, se algo espanta, é o idealismo que permite tal atitude. No mundo do solipsismo colectivo, não há, salvo uma ou outra tendência atávica que o progresso dos costumes deveria há muito ter extirpado, razões empíricas algumas para as pessoas optarem por tal ou tal escolha diferente da nossa. O medo face à criminalidade, por exemplo, ou a reacção à corrupção generalizada. Não. O que há é uma luta imemorial entre o Bem e o Mal, sem meias-tintas e com uma linha divisória impecavelmente traçada entre a virtude e a infâmia. Não é de estranhar que, fora do pequeno horizonte de algumas explicações pré-programadas, por inteiro se encontre ausente daquele discurso qualquer tentativa de compreender e de ter em atenção a causalidade social que conduz à posição adversária. Qualquer responsabilidade própria é exorcisada de uma penada. E a possibilidade da menção a Hitler está sempre à mão para ajudar à missa.

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O sentimento de uma inextinguível virtude própria cega. E quando ele assume a forma de um cepticismo colectivo cega duplamente. Para quem se encontra dentro da bolha a coisa não incomoda, antes pelo contrário: o que se quer é, muito adolescentemente, um mundo em que tudo egotisticamente nos confirme como voz universal, sem desmentido algum possível. Mas para quem se encontre fora dela e precise de alguma liberdade para respirar, a colossal dimensão desta cegueira metódica só pode ser sentida como uma ameaça. Porque, entre outras coisas, ela só pode fortificar aquilo que nominalmente esconjura. E os mecanismos protectores da cegueira, a sua imunidade a qualquer objecção, são tão efectivos que qualquer referência à rugosa realidade do mundo lá fora só pode ser vista como sinal de um objectivo desejo do Mal.

Graças a Deus que já sou suficientemente crescido para não deixar que a compreensível reactividade face aos industriosos tutores do solipsismo colectivo me leve a adoptar, por uma espécie de mimetismo negativo, a defesa de princípios com os quais nada quero ter a ver. Mas a reactividade enquanto tal é um reflexo político muito legítimo. Tão mais legítimo quanto as forças do solipsismo colectivo alegremente militam pela construção de um mundo paralelo que funciona como um véu de palavras e de paixões destinado a impedir qualquer compreensão dos motivos que levam o homem da rua a escolher o que escolhe e a decidir o que decide.

No fundo, há formas de reactividade que representam uma das mais legítimas razões para estarmos atentos às coisas políticas, mesmo quando espontaneamente o nosso espírito voaria preferencialmente para outras direcções. O mecanismo é, pura e simplesmente, um mecanismo de auto-defesa. É que os solipsistas colectivos ameaçam a nossa própria existência e a nossa liberdade pela desatenção organizada que promovem aos bens e males empíricos em nome do confronto entre um Bem e um Mal ideais e absolutos.

Se estivesse no tal concerto de S. Paulo (Deus me livre!), teria vaiado energicamente o missionário Waters pelo sermão que ninguém lhe havia encomendado. Mas, estoicamente, ter-me-ia abstido de um qualquer desejo de reviver os funestos acontecimentos ocorridos em 1554 na então Capitania de Pernambuco. Há costumes dos índios caeté que desaprovo.