Começa esta sexta-feira a Festa do Avante, e, como se sabe, nunca se falou tanto dela. Desse ponto de vista, já é um sucesso. A mim, esta conversa toda lembra-me a história do “supermercado PC”, que se contava nos anos 70, quando o partido era afectuosa e obscenamente tratado pelos aficionados como “o partidão”.

Dois amigos encontram-se na rua e, à despedida, um deles diz ao outro que vai dali comprar umas botas. “Não sejas parvo”, diz o outro, “vai comprá-las ao supermercado PC”. O amigo das botas segue o conselho e, mal entra no supermercado PC, um funcionário vem ter com ele e pergunta-lhe o que quer. “Botas? Primeiro andar, terceira porta à direita.” Lá chegado, outro funcionário aproxima-se dele: “Botas de cano alto ou de cano curto?” O tipo queria de cano alto. “Terceiro andar, quarta porta à esquerda.” No terceiro andar, quarta porta à esquerda, novo funcionário: “Forradas ou não forradas?” “Forradas.” “Nesse caso, segundo andar, ao fundo do corredor.” No lugar indicado, formula o pedido com todos os detalhes: “Quero umas botas de cano alto forradas.” “Com forro natural ou sintético?” Queria natural. “Rés-do-chão, segunda porta à direita.” Lá desce ao rés-do-chão, e, abrindo a segunda porta à direita, apanha-se na rua. Passada uma semana, volta a encontrar o amigo. “Sempre foste ao supermercado PC?” “Fui.” “E compraste as botas?” “Não, mas aquilo tem uma organização impecável.”

Sempre gostei desta história, porque ela espelha muitas coisas. Em primeiro lugar, a imagem de si que o PC tem, a de uma organização herdeira da viril disciplina bolchevique, em que o mais pequeno acontecimento se encontra previsto e programado, sem lugar para o acaso ou qualquer forma de individualismo. Em segundo lugar, o modo como os outros vêem o PC: como um partido em que a eficiência e a ordem se encontram garantidas à partida, reflexo prático da sua admirável coerência doutrinal. Finalmente, a incapacidade de todas essas supostas virtudes satisfazerem minimamente as necessidades das pessoas. Apesar de tudo, o outro sai de lá sem as botas de que precisava. E quem diz botas, diz tudo aquilo que lendariamente faltava nos supermercados da defunta URSS e que continua a faltar nos países que procuram seguir o seu modelo, como, para citar um dos casos mais recentes, a Venezuela.

Não me congratulo excessivamente com a espécie de ferida narcísica que toda esta história em torno da Festa do Avante terá provocado nos comunistas. Até porque aquilo é uma família com os seus rituais próprios que os bons costumes aconselham a deixar correr, procurando interferir o mínimo possível. Mas é preciso reconhecer que esses rituais, e os mitos que eles encenam, possuem um indiscutível conteúdo delirante. Falam, por exemplo, da ciência do sentido da história – a sua experiência delirante primordial, fundamento de um delírio crónico – como o místico sueco Swedenborg falava da indumentária e das habitações dos anjos ou Daniel Paul Schreber, o psicótico paranóico cujas “Memórias” fizeram a delícia de Freud e de gerações de psicanalistas, do advento de uma nova humanidade resultante da sua emasculação e da sua fecundação pelo recebimento dos raios divinos. Estão longe de serem os únicos a delirar, mas é verdade que a incoincidência do seu discurso com a realidade atinge picos difíceis de encontrar noutras paragens. Basta pensar na lista dos regimes que consideram democráticos para se ter uma pequena ideia da extensão daquele particular delírio.

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Voltando à Festa do Avante propriamente dita, a incoincidência do delírio com a realidade afecta directamente a vida de várias outras pessoas, e esse é um bom motivo para metermos o bedelho na vida íntima da família comunista. Os vizinhos da Festa, por exemplo. Com o hospital que os serve, o Garcia de Orta, a rebentar pelas costuras, na freguesia de Amora, à volta da Quinta da Atalaia, as lojas fecham e há pessoas que partem por uns dias, até a festa acabar, com medo do vírus realista socialista, para, inspirado em Trump (a kung-flu), não ter de lhe chamar “vírus comunista”. Nos países comunistas, é uma tradição. Quando se pode, foge-se. E, quando não se foge, é-se muitas vezes deslocado à força. São hábitos.

Mas o PC está longe de ser culpado exclusivo desta história. António Costa e a Dra. Graça da DGS não lhe ficam atrás. Lembram-se, sem dúvida, que a DGS justificou inicialmente a demora na entrega de um parecer sobre a Festa com o filosófico argumento que se tratava de um “evento complexo”. Tão “complexo”, de facto, que se começaram a criar legítimas suspeitas que o parecer não veria nunca a luz do dia. Isto até o Presidente da República se ter queixado que, a cinco dias do início da Festa, não se conheciam ainda as regras que a DGS impunha para que esta fosse autorizada nos nossos tempos de pandemia.

O que aconteceu depois foi um tratado sobre o modo de agir da DGS e de António Costa. No mesmo dia das declarações do Presidente, e em resposta a estas, a DGS anunciou que não iria divulgar o parecer final com as regras da Festa do Avante. As dúvidas na cabeça do cidadão comum adensaram-se: haveria mesmo parecer – ou a “complexidade” era um subterfúgio para deixar correr as coisas sem interferência externa? Mas eis que, no dia seguinte, o parecer foi revelado, em contradição com a afirmação anterior. Esta mudança de posição, literalmente da noite para o dia, foi quase indiferentemente recebida pela cidadania. É claro que há um razoável motivo psicológico para esta indiferença: o padrão de comportamento da Dra. Graça Freitas. Já nada surpreende ninguém no que ela diz e faz a mando do Dr. Costa. Lembram-se das máscaras? “Não usem máscaras. Dão uma falsa sensação de segurança!” Passado uns tempos, até o Dr. Ferro Rodrigues as usava, por conselho da Dra. Freitas. A permanente contradição é, por assim dizer, o motor dialéctico do seu pensamento.

Convém lembrar que, a meio de Agosto, o PC tinha reduzido o número de espectadores previstos por dia no recinto a 33 mil pessoas, em vez das 100 mil inicialmente consideradas. Agora, de acordo com o parecer de última hora, é obrigado a reduzir ainda mais, para, com rigor excruciante e ridículo, 16.563, em cima do início da Festa. Eu, se fosse do PC (que, de resto, continua a vender bilhetes para além da lotação permitida), não achava graça nenhuma. Não por causa, como diz o partido, de “uma gigantesca operação reaccionária” e coisas assim (que relevam do delírio paranóico da perseguição), mas por causa da flagrante falta de respeito pela organização do trabalho alheio por parte do governo. Os empresários (que, além disso, têm de pagar IVA e IRC) não se queixam de outra coisa, e o PC, num mundo ideal, deveria talvez começar a percebê-los.

De qualquer maneira, até o New York Times, que não viu qualquer utilidade em calar o facto para fazer oposição a Trump, achou extravagante a permissão de tal ajuntamento humano. E percebeu bem os motivos para tão curiosa ligeireza: “O governo de centro-esquerda socialista está à procura de apoio político de outros partidos, incluindo os comunistas, para o orçamento de 2021”. Disso e, permito-me acrescentar, da paz nas ruas e da pacatez das manifestações da CGTP. Dito de outro modo: todos os percalços desta aventura têm origem no particular funcionamento da mente do Dr. Costa. Costa, o verdadeiro “homem unidimensional”, move-se exclusivamento no cálculo político que lhe permite conservar o poder. Nada fora disso lhe interessa, o comove, ou constitui sequer verdadeiro objecto de pensamento.

A coisa não vai, no entanto, sem riscos, como toda a gente percebe. Se não houver um aumento significativo de infecções no seguimento da Festa do Avante, o governo terá de explicar aos portugueses porque restringiu drasticamente a sua liberdade nos últimos meses. Se tal aumento acontecer, caber-lhe-á elucidar a população sobre os motivos que o levaram a permitir a realização, neste contexto e nestes moldes, da dita Festa Em ambos os casos, o governo sai a perder. Não tenho dúvidas que a famosíssima habilidade do primeiro-ministro encontrará uma escapatória verbal para esta triste situação em que se meteu, não sendo de excluir, além disso, o fuzilamento da Dra. Graça. Mas menos dúvidas ainda tenho que ela será mendaz e destinada a lançar poeira aos nossos olhos.

Por mim, mandava o Dr. Costa e a Dra. Graça irem fazer compras ao supermercado PC e saírem de lá com as mãos cheias de nada. E que voltassem sempre, com todas as situações milimetricamente repetidas, como no “Groundhog Day”. Ninguém de bom senso em Portugal os quer privar de tão profícuo prazer.