Não se pode (podia?) falar dos problemas que a imigração estava a criar em algumas comunidades locais porque era ir atrás da agenda do Chega. Não se pode falar de insegurança porque somos o país mais seguro do mundo e isso é ir atrás da agenda do Chega. E agora também não se pode falar dos abusos e instrumentalizações dos apoios sociais porque estamos a ir atrás da agenda do Chega. Quando é que alguma classe política entende que o sucesso relativo de André Ventura se explica, em parte, pelo facto de identificar e falar de problemas que preocupam pessoas que vivem fora das zonas mais protegidas dos grandes centros urbanos?

A maioria da classe política nem se preocupa em perceber se há ou não um problema que é preciso diagnosticar com rigor e atacar com coragem. Alguns socialistas limitam-se a tirar do baú os seus valores e princípios – que em geral todos defendem -, colocar o selo de “populista” ou de “Chega” a quem fala desses problemas e castigar os seus militantes que se atrevem a verbalizar o que estão a ver nas suas comunidades, tentando encontrar soluções que vão ao encontro das preocupações dos cidadãos. Na prática, respeitando os valores e princípios que os seus camaradas de partido dizem, abstratamente, defender.

Depois de Ricardo Leão, presidente da Câmara de Loures, foi a vez de crucificar a presidente da Câmara de Alpiarça.  Sónia Sanfona defendeu a inclusão de uma cláusula, no regulamento, que levasse em conta, entre todo um conjunto de critérios, os sinais exteriores de riqueza na decisão do Apoio Social Escolar e que acabou por ser aprovada por unanimidade. Caiu o “Carmo e a Trindade” no espaço público. Mas, felizmente, a autarquia fez um comunicado em que mantém a sua posição, explicando todo o processo, longo, que levou a esta decisão. Sublinhando que as suas decisões podem ser contestadas, lembra igualmente que podem ser participadas à Segurança Social e à Autoridade Tributárias as dúvidas que resultem da incongruência entre a declaração de rendimentos e os sinais exteriores de riqueza. Também numa entrevista à SIC Notícias, a autarca defendeu, e bem, a sua posição.

O facto de a declaração de rendimentos constituir o principal critério de atribuição de apoios sociais levanta óbvios problemas, suscetíveis de levar o Estado a ajudar quem não precisa. Existindo e identificado há décadas, este problema foi-se reduzindo à medida que a Administração Fiscal se tornou mais eficaz no combate à fuga aos impostos, o que não significa que tenha desaparecido. Mas as políticas sociais têm, frequentemente, de escolher o mal menor. Prefere-se, e bem, correr o risco de apoiar quem não necessita, a deixar de fora quem precisa.

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A questão, actualmente, é que as pessoas parecem estar mais sensíveis à injustiça de apoiar quem não precisa. Sempre houve casos desses, em geral associados a quem tinha uma família que trabalhava por conta própria. Mas hoje proliferam, mais do que no passado, histórias de quem consegue obter um rendimento da ordem da média dos portugueses que trabalha, mas sem trabalhar. Além disso, essa partilha já não se limita aos mais pobres, mas a quem se pode considerar a classe média. Os autarcas, estando mais perto dos cidadãos, são obviamente os que conhecem melhor as injustiças e as histórias que vão sendo contadas.

Embora essa maior sensibilidade aos apoios sociais exija uma investigação mais profunda, podem colocar-se hipóteses. Uma delas é a degradação dos salários na sua relação com o custo de vida, com um crescente número de pessoas que trabalham e pagam as contas com dificuldade, mas, com os critérios existentes, não conseguem ter apoios.  Outra alternativa pode estar ligada à proliferação de apoios sociais, alguns deles com a possibilidade de serem acumulados, criando-se margem para se atingirem rendimentos que um trabalhador menos qualificado não consegue.

A questão é que o problema existe e tem de ser enfrentado. Os autarcas, mesmo contra a vontade dos seus partidos, podem e devem corrigir a situação sempre que possível. Desse ponto de vista, quer Ricardo Leão – embora fosse adequada outra linguagem – como Sónia Sanfona atuaram no sentido correto. A presidente da Câmara de Alpiarça colocou aliás a questão de forma correta, na entrevista que deu à SIC Notícias: “Com que legitimidade se atribuem subsídios a uma família que visivelmente toda a gente sabe que tem bens que são caros, que vive numa casa cara”. E assumiu a divergência com o seu partido.

O PS resolveu tratar a questão focando-se no Chega em vez de se concentrar no problema. O facto de ter já dois autarcas a quererem promover a justiça na atribuição dos apoios sociais deveria ser motivo de orgulho dos socialistas, por estarem atentos às injustiças sociais que se podem estar a gerar na atribuição dos apoios do Estado. Mas não, resolveram mais uma vez ignorar o problema e escolher debater a forma. E houve até quem propusesse um livrinho de regras de discurso para os autarcas.

São as atitudes sobranceiras e arrogantes, que desvalorizam os problemas dos cidadãos, indiretamente desprezando-os, que explicam o crescimento de abordagens populistas. Imigração, insegurança e apoios sociais são problemas difíceis de resolver, mas que devem ser reconhecidos como estando a afetar algumas comunidades. Só depois de se assumir que temos esses problemas é que podemos encontrar as soluções e os discursos adequados. Transforma esses problemas em tabus e arquivar as questões, colocando-lhes selos de esquerda ou de direita, para os desvalorizar, é meio caminho andado para se alimentar uma crescente revolta contra a classe política. Que ninguém quer.