Na verdade, todos nós crescemos num mundo em que nos recomendam que façamos um esforço para estarmos atentos. O que, de um jeito inacreditável, incentiva, de forma generosa, a distração. Porque nos convida a partimo-nos a meio: entre uma parte de nós que se emociona e que sente; que “apanha as coisas no ar”, que intuí e que cria; e uma outra que serve de “preceptora” em relação à primeira. Como se, se não nos obrigássemos à contenção e ao comedimento, acabássemos todos no exagero, no impulso ou no agir. Vendo com olhos de ver, vivemos, por fora, em democracia. E, por dentro, num regime musculado. Negacionista. Que aspira à ditadura. Como se o cume da natureza humana fosse o controle. Tal é a forma como se racionaliza a preceito. E nunca, ou quase nunca, a liberdade de nos escutarmos. De usufruirmos do contraditório com que os conflitos interiores nos desafiam para as convicções. E de aprendermos com tudo aquilo que, de espontâneo, somos capazes de pensar.

Como se nada disso já não fosse um absurdo, “esquecermo-nos” do quanto a atenção é um gesto espontâneo. Uma consensualidade de sentidos. Que se faz em função de apelos à curiosidade e ao conhecimento. E nunca como se o sossego e o silêncio pré-fabricados fossem a mola com que escutamos o silêncio que nos conduz até ela. Como temos todos, ao pé de nós, a vida a acotovelar-se com tantas novidades a concorrer umas com as outras, e tantas e tão diversas pessoas tão chatas que se têm em tão boa conta, como não havemos de não ser distraídos? Será que, por um momento que seja, prescindimos do que é importante para nós em benefício do supérfluo ou do entediante que nos queiram impor? Mas, afinal, quem acaba por ter défices de atenção: os que escutam a liberdade do seu pensamento ou os outros que nos pretendem levar à normalização, como se aqueles que refletem os outros fossem sempre melhores do que quem pensa por si?

Fazer-se um esforço para estar atento, um esforço para gostar ou um esforço para mudar não é nem caprichar na atenção, nem no amor nem na transformação. É ser-se esforçado. Quase pré-esforçado. O que é meio caminho andado para se ser falso. Por mais que, por fora, tudo pareça mais amigo do normal. Isto é, vivemos num mundo de pessoas partidas ao meio. E, só por isso, de pessoas esforçadas. Não tanto de pessoas com garra. Com genica. Livres. Com convicções. E com paixão. Como pode um mundo cheio de degradés de cinzento ser a janela com que nos tornamos soalheiros e ganhamos cor? Não pode; claro.

Mas o nosso mundo também se faz de pronto a vestir. De tamanhos únicos. De normalização de dados. De fast-food. De pré-lavados, de pré-fabricados e de pré-cozinhados. De “faça você mesmo”. De auto-ajuda. Ou de um “novo normal”. Porque diabo não havia ele, também, de não querer o fácil no pensar e de não se fazer de frases ou de ideias “feitas”, que mais nos partem ao meio? Como quando nos falam d’ “o tamanho do ego”. Mas, afinal, será que é de supor que, entre tanta “normalidade”, seja suposto que também o ego tenha medidas standard?

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O ego chegou à linguagem banal com Freud. Que, num registo judaico-cristão, concebia três degraus na vida mental: um, mais “animal”, instintivo e, até, impulsivo, inconsciente, a que chamou id. Um outro, mais próximo da ética da relação e do juízo moral, a que chamou superego (super-eu). E um terceiro, que faria a ponte entre os dois, chamado ego (eu). Vendo bem, o ego cresceria das tensões entre as nossas reacções mais espontâneas e mais “profundas” e as regras de bom senso que se sedimentam nos preceitos sociais que nos balizam e orientam. Em rigor, um ego muito grande não será, hoje, necessariamente, mau. Pelo contrário. Porque não será uma solução espartilhada para compatibilizar vida mental e regras sociais. Mas, antes, um esforço de síntese, constante, que contribui para uma identidade mais versátil, mais livre e mais robusta. Onde os conflitos, em vez de serem a base dos nossos estremecimentos, serão um dos alicerce do equilíbrio. Fosse como fosse, na sua versão original, o ego seria sempre o resultado de nos partirmos ao meio. E, aí, o ego seria uma espécie de pote suspensa. Instável. Fazendo por domesticar um lado “animal” em favor da regra e da norma. É claro que Freud cometeu um erro desculpável: não entendeu que a vida mental, no seu equilíbrio ecológico, não é um lado animal. Ver como perigosa a fonte incansável da sabedoria terá sido uma escorregadela de quem deixou que um pensamento de época, ele próprio confessional, entrasse por um raciocínio que se queria científico. Ora, nem as emoções são tolas assim nem os sentimentos são irreflectidos. Nem aquilo que apanhamos no ar faz de nós cabeças de vento. Nem o que intuímos traduz o que há de mais rudimentar nas leituras que fazemos do mundo. Pegar no “filet mignon” da vida e colocar sobre ele um anátema de “Perigo!” não foi prudente. Mas, valha a verdade, em nada destoa do mundo controlado, racionalizado e falso para com aquilo que se passa connosco em que, hoje, vivemos.

É claro que “um ego muito grande” na linguagem coloquial de todos os dias pretende descrever um mix de muitas coisas diferentes do conceito original. Cabendo aí quer as pessoas que falam para se ouvir. Como as que só se ouvem a elas. As egoístas. As“Illuminati”. E aquelas que, por mais espírito de missão que ponham nas palavras, não passam de vaidosas. As chatas. E, como se não chegasse, as falsas. Aquelas que são pouco dadas à verdade. Intolerantes. Incapazes de reconhecerem a culpa. E pouco amigas do remorso. As amigas da unicidade. Que imaginam que os outros servem mais para obedecer do que para pensarem com elas.  Em resumo, as pessoas pré-esforçadas, portanto. Aquelas que reagem com uma urticária fora do vulgar diante de todos aqueles que são livres. Porque é que elas serão assim? Porque sem esse colete de forças seriam impulsivas, “primárias” e violentas.

Não é tão fácil assim ter-se “um ego muito grande”. Como a brandura da forma como utilizamos o termo dá a entender. Mas, apesar disso, há uma espécie de ideal de pessoas com “um ego muito grande” que anda no ar. É verdade que sim. Num mundo que, ele próprio, prefere os esforçados aos livres. Os distraídos aos atentos. Os refletidos aqueles que sabem o que querem. Os sossegados aos aguerridos. Os silenciosos aos interpelantes. O mundo não é tão democrático como parece. Sobretudo enquanto nos quer, com subtileza, partidos ao meio. Quando o ego é, em rigor uma ponte — e um ego muito grande seria aquilo que mais une aquilo que, à primeira vista, nos separa — o mundo, ao querer-nos esforçados, é esquizofrenizante. Ensina-nos a ter medo do que temos de melhor. Transforma conhecimento em fantasmas. Como se crescer fosse fugir.