Texto publicado no livro “101 Vozes pela Sustentabilidade – por um Desenvolvimento Sustentável”, iniciativa do ISCTE Executive Education, edição Oficina do Livro, Maio 2022

Se a transição não for justa, ela não acontecerá. Será interrompida pela oposição dos que se sentirem esquecidos e perspetivarem as suas vidas irremediavelmente destruídas. Será minada por interesses financeiros imediatistas, que instrumentalizarão os que forem marginalizados. Se a transição não for justa, falharemos miseravelmente. Não apenas como geração, mas como espécie na Terra.

As alterações climáticas e a definição de respostas políticas eficazes são um desafio sem precedente na História moderna. Vivemos uma década crítica para a preservação dos ecossistemas, dos habitats naturais, da biodiversidade dos continentes e oceanos. E o que está em causa é algo bem tangível. É a preservação da vida na Terra como a conhecemos. É a preservação da própria espécie humana. É uma questão genuína e etimologicamente existencial.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As alterações climáticas são um fenómeno global, planetário, sem fronteiras nem barreiras. A subida do nível médio da água do mar não aumentou apenas o risco de inundações. Para as populações costeiras e para as que povoam tantas ilhas das Caraíbas ao Pacífico, o que está em causa é a sua existência e a dos espaços que habitam.

Os fenómenos meteorológicos extremos são cada vez mais frequentes. Tempestades intensas, incêndios florestais devastadores e períodos de seca extrema ameaçam sistematicamente a segurança de milhões de seres humanos e os seus meios de subsistência. Seja na Europa ou na Ásia, em África ou na América. Seja no hemisfério sul ou no hemisfério norte. Sejam ricos ou pobres. É, no entanto, indesmentível que os efeitos das alterações climáticas são mais severos para aqueles que menos têm. É sobre esses que se geram as consequências mais devastadoras. É sobre esses que as alterações climáticas se têm traduzido num aumento da pressão sobre os meios básicos necessários à vida humana, com impactos económicos e sociais insustentáveis e implicações políticas profundas.

Dois mil e vinte e um foi mais um ano marcado por fenómenos meteorológicos extremos. As cheias e incêndios que, quase em simultâneo, assolaram a Europa durante o verão e as ondas de frio e ciclones que afetaram os Estados Unidos deram aos fenómenos climáticos uma visibilidade sem precedentes. Puseram-nos no nosso quotidiano, à frente dos nossos olhos. Mas estes efeitos manifestaram-se uma vez mais em países em desenvolvimento, onde as alterações climáticas têm efeitos mais evidentes na desigualdade extrema e no desencadear de fluxos migratórios desordenados. A seca extrema e prolongada em Madagáscar foi um exemplo marcante e poderá, inclusivamente, causar a primeira fome diretamente associável às alterações climáticas.

Se a transição climática não for justa, falharemos miseravelmente

De acordo com o Banco Mundial, as alterações climáticas poderão criar entre 30 e 130 milhões de pobres na próxima década. As previsões da Organização Internacional para as Migrações indicam que os fenómenos climáticos serão o mais importante fator de migrações forçadas, conduzindo nos próximos 30 anos à deslocalização de mais de 200 milhões de pessoas e a que cerca de 150 milhões de seres humanos troquem o meio rural pelo urbano. São 350 milhões, o equivalente à população europeia. Gente que foge à fome e à seca dos locais que habita, para partilhar recursos dos locais para onde vai, gerando um ciclo imparável de pressão sobre os meios básicos de vida com consequências terríveis (ver figura 1, em anexo).

A pandemia acentuou mais as desigualdades. As estimativas do Banco Mundial apontam para que tenha destruído mais de 250 milhões de empregos em 2020 e para que o número de pessoas a viver em situação de pobreza extrema tenha aumentado mais de 150 milhões. Em 2030, poderemos ter mil milhões de seres humanos a viver em pobreza extrema de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

As alterações climáticas acentuam as desigualdades globais mais do que qualquer outra dinâmica evolutiva. Os países desenvolvidos são responsáveis pela larga maioria das emissões de CO2, mas são os menos afetados pelos fenómenos climáticos que estas causam. Pelo contrário, os países em desenvolvimento, que menos emitem, são precisamente os mais afetados. Haverá dinâmica mais injusta ou desigual? A transição climática tem de ser justa. Custos e benefícios têm de ser justamente partilhados.

A União Europeia enquanto bloco económico, social e político tem um papel decisivo. A União assumiu o compromisso de redução de pelo menos 55% das emissões de gases com efeito de estufa até 2030 e tem como ambição tornar-se no primeiro continente a atingir a neutralidade carbónica em 2050. O Pacto Ecológico Europeu é um compromisso ambicioso e abrangente, que preconiza um crescimento verdadeiramente sustentável. E a União pôs os seus recursos financeiros ao serviço deste objetivo. Um terço dos 1,8 biliões de euros do Fundo de Recuperação e Resiliência e do Orçamento para os próximos sete anos são dedicados a este desígnio.

Mas a União Europeia contribui apenas 8% para as emissões globais. A Europa não conseguirá, por si só, fazer face a um fenómeno para o qual tem uma contribuição limitada. Por isso, tem de assumir a liderança e, em coordenação com os demais blocos, preconizar uma resposta global.

A transição para um modelo económico sustentável implica alterações estruturais com um impacto desigual. A transição para uma economia neutra em carbono implicará a maior redistribuição de riqueza a que muito provavelmente assistiremos nas nossas vidas. Uma descarbonização bem-sucedida implicará que as reservas de petróleo e gás, que são fonte de riqueza de tantas economias, deixem de ter valor. As economias emergentes e em desenvolvimento que assentam o seu rendimento na exploração de reservas fósseis têm um período muito curto para diversificar o seu tecido produtivo.

O desenvolvimento das economias implicará por si um aumento das necessidades energéticas. Se a transição não for justa e inclusiva, essas necessidades serão satisfeitas por energia não- renovável. E se assim for, falharemos.

Se a transição não for justa, ela não acontecerá. Será interrompida pela oposição dos que se sentirem esquecidos e perspetivarem as suas vidas irremediavelmente destruídas. Será minada por interesses financeiros imediatistas, que instrumentalizarão os que forem marginalizados. Se a transição não for justa, falharemos miseravelmente. Não apenas como geração, mas como espécie na Terra.

Para que a transição seja justa, a redistribuição de riqueza tem de ser governada. O mercado por si só não o fará de forma justa. É necessária uma politica multilateral e coordenada à escala global. Numa transição justa, não pode haver nem vencedores antecipados e incontestados, nem vencidos irremediavelmente destruídos. Nem no curto, nem no longo prazo. Para assegurar uma transição sustentável são necessárias políticas redistributivas globais, que apoiem a requalificação das pessoas e a reestruturação das regiões mais afetadas. As regiões mais desenvolvidas têm a responsabilidade de apoiar as mais afetadas dentro e fora da União Europeia.

Uma luz Azul que nunca se apagará

A transição climática encerra em si um potencial enorme de desenvolvimento económico e social. Um enorme potencial de inovação e criação de emprego e rendimento. A Economia Azul é disso um bom exemplo.

Os oceanos e os mares são essenciais para uma economia sustentável e inclusiva. Os oceanos são tão importantes para a economia como para a transição climática. Absorvem 30% das emissões de gases com efeito de estufa, produzem metade do oxigénio que respiramos e têm um enorme potencial económico.

As previsões da OCDE apontam para que em 2030 a Economia Azul possa mais do que duplicar o seu valor face a 2016 e alcançar um valor superior a três biliões de dólares. Hoje, a Economia Azul emprega apenas cinco milhões dos 227 milhões de trabalhadores na União Europeia. É uma oportunidade enorme que não podemos desperdiçar. Setores como as energias renováveis marítimas, a pesca e a aquicultura sustentáveis, o turismo costeiro e marítimo e a bioeconomia azul são setores de futuro.

As oportunidades são muito vastas. E Portugal e a Europa têm neste setor uma enorme vantagem competitiva. É fundamental apoiar a inovação e alargar o conhecimento técnico, gerando valor e emprego. Apoiando a economia europeia e apoiando também as economias emergentes e em desenvolvimento. Assegurando uma transição climática e tecnológica que contribua para o desenvolvimento dos povos.

Uma Europa global e multilateral

O combate às alterações climáticas é uma prioridade política da União Europeia. Enquanto bloco económico e político e como maior produtor mundial de tecnologias limpas, a União deve assumir a liderança no reforço dos compromissos internacionais em matéria de clima. Uma liderança estratégica pelo exemplo e coordenando esforços e iniciativas multilaterais.

A Europa é líder global no setor de energias renováveis, tendo mais patentes registadas no âmbito das tecnologias amigas do ambiente que os Estado Unidos e a China juntos. A Europa dispõe da tecnologia para apoiar as economias emergentes nos seus esforços de transição energética, apoiando financeiramente investimentos eficientes, contribuindo para o desenvolvimento social e promovendo a adaptação das regiões mais vulneráveis.

A transição para a neutralidade carbónica exige recursos substanciais. Os países desenvolvidos comprometeram-se a mobilizar anualmente 100 mil milhões de dólares para apoiar os países em desenvolvimento. A União e os seus Estados-membro são os maiores contribuintes públicos para o financiamento da ação climática global, tendo o financiamento excedido os 23 mil milhões de euros em 2020.

A Europa tem tudo para assumir uma liderança que já é sua por direito próprio.

Pondo o dinheiro onde estão as nossas prioridades

Desenganem-se aqueles que pensam que a transição climática é apenas uma questão de financiamento público. Os recursos públicos, por si só, nunca serão suficientes para financiar uma transição climática bem-sucedida.

A transição climática exige um forte envolvimento do setor privado. É necessário que as empresas adotem cada vez mais estratégias responsáveis, que invistam na sua sustentabilidade, que se reinventem e inovem, que produzam cada vez mais tecnologias limpas. Para tal será necessário também fomentar a complementaridade entre financiamento público e privado para o desenvolvimento de novas tecnologias e projetos sustentáveis.

As instituições financeiras multilaterais terão a este respeito um papel decisivo. Porque estão vocacionadas e preparadas para assegurar a coordenação dos diversos intervenientes, para garantir o diálogo sobre as políticas económicas, ambientais e sociais e para mobilizar financiamento privado adicional. Para que fundos públicos escassos possam mobilizar os fundos privados necessários.

O investimento privado é essencial para alcançarmos uma economia neutra em carbono.

Os fatores produtivos da inovação: paciência e partilha de risco

O Banco Europeu de Investimento assumiu o papel de Banco do Clima e de Banco de Desenvolvimento da União Europeia, dando expressão financeira às prioridades políticas. Porque na Europa as prioridades políticas estão primeiro, sobrepõem-se aos interesses privados por muito legítimos que estes sejam.

O Banco Europeu de Investimento é hoje o maior financiador multilateral no combate às alterações climáticas, tendo eliminado o financiamento de projetos assentes em combustíveis fósseis, alinhado as suas operações com o Acordo de Paris e assumindo o compromisso de aumentar para mais de 50% do seu financiamento o apoio a projetos direcionados para a ação climática.

A transição climática justa exige inovação e difusão tecnológica. E o desenvolvimento de tecnologias inovadoras depende de dois fatores produtivos não convencionais: a paciência e a capacidade de partilha de risco. Essas são características fundamentais de um banco de políticas públicas. A paciência de apoiar projetos e esperar o seu retorno em prazos longos, sem a pressão de remunerar acionistas no curto prazo. A capacidade de partilhar riscos com investidores privados, porque toda a inovação implica a assunção de níveis de risco elevados, que muitas vezes os investidores privados não têm capacidade de assumir por si só. Tornando projetos não bancáveis em projetos bancáveis e de sucesso.

É neste contexto que o Banco Europeu de Investimento, no âmbito dos programas europeus, desempenhará um papel central. Em parceria com o setor privado, para que o financiamento do orçamento europeu e do Fundo de Recuperação e Resiliência possa servir para catalisar investimento privado e mobilizar os recursos necessários para uma transição justa, que preserve os níveis de vida dos cidadãos na União Europeia, mas também fora dela.

Uma Taxonomia Verde europeia para que não haja 50 tons de verde

A mobilização de recursos privados exige também o desenvolvimento dos mercados financeiros. Os mercados são essenciais na canalização da poupança e os investidores estão a mudar a sua abordagem.

Em 2007, o Banco Europeu de Investimento emitiu a primeira obrigação verde. Aquilo que era uma ideia de nicho e inovadora, 14 anos e 40 mil milhões de euros depois é uma tendência de mercado. A procura por ativos verdes tem aumentado e já existe hoje uma curva de obrigações verdes em euros. O mercado das obrigações verdes ultrapassou já um bilião de dólares. Um progresso limitado perante um mercado de cerca de 120 biliões de dólares, mas que traduz uma tendência sustentada.

Os mercados são instituições. Por isso, o seu funcionamento exige regras claras e transparência. A Taxonomia Verde europeia é essencial para reduzir a incerteza, aumentar a comparabilidade entre ativos e assegurar que todos aplicam as suas poupanças naquilo que, de facto, querem financiar. Para evitar que as poupanças sejam indevidamente aplicadas em atividades pseudo-sustentáveis. Evitando que existam 50 tons de verde. Evitando o que se convencionou designar por greenwashing.

A Taxonomia Verde da União Europeia é essencial para o desenvolvimento do mercado. A Taxonomia aplica-se a toda a cadeia de investimento dos projetos. Desde a conceção até ao desenvolvimento e implementação, vinculando todo o financiamento a projetos sustentáveis e com impacto efetivo e real na transição para a neutralidade carbónica.

As obrigações verdes terão um papel cada vez mais preponderante.

O tempo é agora. É um imperativo. Não menos que isso

O tempo é agora. É o nosso tempo. O tempo de mostrar que estamos à altura do desafio existencial que enfrentamos. E temos tudo para o fazer.

O acordo mundial para a eliminação do consumo de produtos com CFC assinado há 34 anos em Montreal, permitiu que hoje exista evidência sólida da reposição da camada de ozono. Esta é uma das maiores provas do poder da coordenação multilateral de políticas. A transição para uma economia descarbonizada é um imperativo e com as políticas certas, juntos, faremos face às alterações climáticas.

É essencial transformar desafios em oportunidades, para que a recuperação seja inclusiva e sustentável. Devemo-lo às próximas gerações, mas também a nós. A todos nós, para que ninguém fique para trás.

O tempo é este! Porque não há mais tempo. (Lewis Allan Reed, NYC, 1989)