Texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ.

Nas eleições europeias do passado dia 26 de maio, no seu discurso de vitória Matteo Salvini, vice primeiro-ministro e líder do partido italiano “Liga Norte” apareceu diante das câmaras de televisão com um terço na mão, agradecendo a “quem lá de cima contribuiu para este resultado”. Já antes, num dos últimos comícios da campanha, em Milão (na presença de outros líderes da extrema-direita europeia como Marine Le Pen e Geert Wilders), tinha proclamado a sua certeza de que “o Imaculado Coração de Maria nos levará à vitória!” Esta demonstração de “catolicismo” suscitou vivas reações, numa calorosa polémica (possivelmente almejada por Salvini) na qual a paixão dos argumentos facilmente obscurece aquilo que está realmente em causa.
Uma primeira linha de reações a este trazer a fé para o discurso político é de completa rejeição, sobretudo pelos defensores de uma “tolerância” que vê aqui um ataque à neutralidade religiosa do estado e do espaço público. Na verdade, parece que para muitos a religião, sobretudo se cristã, é um tabu do discurso político e qualquer infração vem logo anatemizada como “populista”, “radical” ou “reacionária”.

Do lado oposto, não poucas vozes se ergueram para aplaudir a “coragem” de um político que assume a sua fé, nomeadamente para defender o caráter eminentemente cristão da sociedade europeia, elemento fundamental das suas raízes e identidade. Este gesto é por isso interpretado como libertação do jugo do politicamente correto, instrumento ao serviço de umas elites alheadas da vida e dos problemas das pessoas concretas.

Nenhuma destas duas formas de reagir me parece aceitável, apresentando perigos que é necessário enfrentar, renunciando à tentação de combater um extremo com extremo oposto. Se é certo que a fé não deve ser confinada ao âmbito privado (das consciências e das sacristias), mas tem o direito e o dever de revindicar uma participação no espaço público, também não pode ficar refém de um discurso político particular. Apesar de já não estar na ordem do dia a ideia de uma “Constituição Europeia”, é urgente trazer ao debate público a identidade do projeto europeu, reconhecer as suas raízes cristãs, que não estão apenas na Europa dos mosteiros, das catedrais e das universidades, mas também no sonho dos construtores da integração europeia no pós-guerra. Por outro lado, a crise atual do debate político alimenta-se de falsas discussões em que os slogans fáceis e as fake news tendem a substituir os argumentos, e as trocas de farpas nas redes sociais impedem um diálogo sereno e um debate construtivo.

Neste contexto, a postura de Salvini não parece de todo corresponder ao desejo de uma maior profundidade do debate político a partir da fé cristã. No seu discurso, que frequentemente assume tons de cruzada contra os poderes instalados de “Bruxelas”, da “Esquerda”, ou da “globalização”, não se vislumbra qualquer reconhecimento de uma dimensão transcendente da existência (individual e social). Mesmo invocando os santos padroeiros da Europa, como fez em Milão, nunca desenvolve o contributo (passado e presente) do cristianismo para a identidade dos povos europeus e do projeto de uma Europa unida. Na verdade, as referências a Nossa Senhora surgem no seu discurso como elementos totalmente estranhos, quase como “argumento de autoridade” que ajudassem a confirmar as suas posições. É significativo que Salvini se refira tão facilmente ao “Imaculado Coração de Maria”, mas nunca fale do Evangelho. No fundo a fé parece estar ao serviço da sua agenda política, quando o testemunho cristão de um político (como de qualquer cristão) deveria ser o de pôr a sua vida, o seu trabalho, os seus esforços ao serviço do Reino.

Portugal, até ao momento, parece isento deste tipo de populismos, mas não devemos sentir-nos “livres de perigo” ou imunes a estes problemas. O episódio da divulgação por parte do Patriarcado de Lisboa de um “cartaz” da Federação Portuguesa pela Vida, no qual se comparavam as posturas de diversos partidos acerca de temas “pró-vida”, é sinal disso. Surgiram subitamente defensores da laicidade, preocupados por aquilo que interpretaram como apelo ao voto em partidos populistas por parte da Igreja, e não faltaram arautos da doutrina cristã a aplaudir o gesto e a indignar-se quando a publicação do Patriarcado foi retirada por imprudência. Gosto de imaginar que reações teria suscitado uma situação semelhante com uma associação ambientalista… O facto de pensar que muitos dos que agora rasgaram as vestes louvariam a iniciativa e vice-versa deixa-me a pensar que mais uma vez a fé ou a “identidade cristã” foram instrumentalizados.

Jesus, ao convidar-nos a “dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”, não nos pede para esconder a nossa fé, nem para excluir Deus da intervenção no espaço público, antes motiva para pensar e agir, em todos os âmbitos, como expressão da adesão a Cristo. O Evangelho não pode ser posto ao serviço de um programa, nem apropriado por nenhuma ideologia, mas deve ser critério de ação e instrumento de liberdade. A fé é antes de mais deixar-se olhar e pôr em causa por um Outro. Não basta invocar o Imaculado Coração de Maria e andar de terço no bolso, é preciso também rezar…

Sacerdote jesuíta

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