Não consigo recordar onde e quando ouvi ou li a ideia de que os livros são espelhos. Quando lemos, e mesmo que leiamos a história de alguém que não existiu (ou a história de alguém que nem sequer pode existir, no caso de personagens mitológicas), podemos encontrar quem somos como até esse momento nunca tínhamos encontrado. Portanto, quando pegas numa página escrita, não encontras coisas novas apenas; podes encontrar a coisa mais antiga para ti que és tu mesmo, ainda que a pretexto de uma história completamente diferente da tua. Ler pode ser descobrir o novo mas ler pode também ser constatar o mais corriqueiro num momento de surpresa. Não é por isso de estranhar o poder que alguns livros têm de alterar completamente a nossa história: entrámos neles de um modo e saímos deles de outro.

Uma das últimas vezes que isso aconteceu comigo foi com Charles Dickens. Passava um período sabático com a minha família em Jackson, no estado do Mississippi, e o escritor britânico ocupava a primeira parte das minhas manhãs, com as aventuras e desventuras de Pip, nas “Grandes Esperanças”. Lia primeiro a Bíblia, lia depois o Dickens, e lia ainda o livro incrível que o americano Mark Molesky escreveu sobre o nosso terramoto de 1755, “This Gulf Of Fire” (já editado entre nós pela Relógio D’Água, como “O Abismo de Fogo”). Essa foi uma época de leitura intensa, para um leitor lento como eu. Como parti para esse tempo de descanso todo estoirado, qualquer coisa que lia tinha um efeito terapêutico exponencial. Lia, chorava, lia, chorava. Parecia um tolinho—estão a ver a linha.

Acho improvável que a leitura dos últimos capítulos das “Grandes Esperanças”, quando feita de coração aberto, se faça de olhos secos. Um dos génios do livro é que quem recebe o maior impacto pelo que acontece ao Pip nem é o leitor, é o próprio Pip. Ou seja: o melhor que encontramos nesta história também passa pelo facto de a sua personagem principal ser a mais perdida nela. Felizmente, isso não acontece sem esperança—afinal elas são grandes e, de certo modo, concretizam-se. As voltas e reviravoltas deste livro de Charles Dickens serviram de mapa possível para o jovem Pip e para o Tiago mais envelhecido e cansado que o lia—as “Grandes Esperanças” espelharam-me.

De lá para cá, e além da referência constante e óbvia que é a Bíblia, gosto de aplicar uma pequena disciplina pessoal: que livros é que andam a dar-me o reflexo mais nítido de quem sou? Qual é o espelho que tenho encontrado naquilo que outros escrevem? Quem sou eu nas palavras que não são minhas? Não me quero imaginar abandonado a mim mesmo e ao discurso que tão naturalmente possa produzir acerca de quem sou: já lá estive e não é um lugar que recomende.

Uma das linhas das “Grandes Esperanças” que, verdade seja dita, podia integrar um catálogo de frases de auto-ajuda, vai assim no original: “Suffering has been stronger than all other teaching, and has taught me to understand what your heart used to be. I have been bent and broken, but – I hope – into a better shape.” E deixem-me arriscar a minha tradução própria: “O sofrimento tem sido mais forte do que qualquer outro ensino, e tem-me ensinado a compreender o que o [teu] coração costumava ser. Tenho sido dobrado e partido, mas – espero – para um molde melhor”.

Um molde melhor. As palavras moldam-nos. Não ler é desistir desse molde melhor, dessa forma preferível. Como espelho que os livros são, os nossos contornos não são apenas revelados por eles como também refeitos.

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