Semanas atrás, enquanto saltitava de site em site, tive um vislumbre do futebol do futuro. Não, não foi um daqueles vídeos em que um miúdo das camadas jovens do Boca Juniors finta onze adversários e ganha um contrato com o Real Madrid. Também não foi aquela imagem de Cristianinho a enfiar a bola na gaveta no Estádio da Luz. Nem foi o imaginário anúncio que, daqui a dez anos, todos os clubes ingleses estarão nas mãos de Jorge Mendes. E, para terminar, não foi uma visita guiada pelo Caixa Campus em que Luís Filipe Vieira apresenta ao mundo laboratórios, nutricionistas, fisioterapeutas e a futura espinha dorsal do Mónaco e do Wolverhampton. Nada disto. O futebol do futuro apareceu-me numa entrevista de um “coaching methodology analyst”, um “analista de metodologia de treino”.

João Nuno Fonseca é português e trabalha para o grupo que detém o Manchester City, o New York City, e outros “Citys”. Ele monitoriza “equipas de referência” (surveillance), tem uma “visão bastante holística das coisas” e “95% do trabalho é feito através do computador”. Longe de mim querer ser o ludita de serviço. Também vi o Moneyball e nada tenho contra a informática aplicada ao desporto, o Big Data, a Internet de Todas as Coisas e demais formas de bruxaria cibernética. Porém, se o futuro é isto, convém desde já proteger certas espécies em vias de extinção, como aquele tipo de treinador arcaico, herdeiro das saudosas metodologias pré-históricas de um Joaquim Meirim, que vai rareando pelo mundo e, proporcionalmente, pode ser encontrado com alguma facilidade nos bancos mundialistas.

Óscar Ramírez, por exemplo, selecionador da Costa Rica. Recuemos no tempo. Em 1990, em Itália, os ticos estrearam-se em campeonatos do mundo. Tiveram uma prestação condigna. Passaram a fase de grupos e caíram nos oitavos-de-final, contra a Checoslováquia de Tomáš Skuhravý, num sábado à noite em Bari, num dos jogos mais memoráveis, pelo menos para mim, desse campeonato.

Na equipa costa-riquenha destacavam-se o lendário guarda-redes Conejo e o avançado com nome de personagem de romance caribenho Hernán Medford. Por lá também andava, mais discreto, um então jovem Óscar Ramírez, que atuava no Alajualense. Ramírez nunca saiu da Costa Rica, nem mesmo quando iniciou a carreira de treinador, primeiro como adjunto do ex-companheiro de equipa, Medford, no Deportivo Saprissa, e depois como treinador principal, de volta ao Alajuelense.

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Chegou ao comando da seleção nacional costa-riquenha em 2015. A primeira coisa a elogiar é o seu aspeto anacrónico, que evoca um Vítor Urbano, um elemento do Trio Odemira ou qualquer outro treinador português da época em que para se sentar no banco o requisito não era o curso de nível IV mas ter bigode. Além disso, Ramírez tem um amável ar de desamparo, que será tanto emocional como tecnológico. Olhamos para ele e pensamos de imediato que não é o género de pessoa que saiba o que é um “coaching methodology analyst”.

Há dias, após um jogo de preparação contra a Bélgica, o selecionador tornou-se uma estrela internacional. Ao referir-se a Eden Hazard, foi cândido: “Aquele rapaz, o número 10, não sei como se chama”. Disse-o sem acinte e sem vergonha. Simplesmente não sabia o nome da maior estrela do adversário. Ora, os “futuristas” que me perdoem, mas esta candura, este amadorismo, é tão valioso como as pinturas nas grutas de Altamira. Oferece-nos a possibilidade de viajar no tempo sem os incómodos físicos inerentes ao acto, permite-nos contactar com um cérebro humano do passado sem que esteja conservado em formol dentro de um frasco.

Lembro-me de, há uns anos, antes de um jogo com a Alemanha, creio que no Euro-2008, Luiz Felipe Scolari, outro exemplar jurássico, se referir na palestra a um jogador da Mannschaft como “aquele lá, o número 6” e era Fernando Meira, que acumulava as funções de central com as de especialista em cultura germânica, a dizer o nome do jogador para ilustração e proveito dos seus companheiros, sobretudo de Pepe, que, por questões deontológicas, jamais atacou as canelas de um inimigo sem antes lhe perguntar qual a sua graça. Porém, identificar os jogadores pelo número da camisola e não pelo nome, em especial quando se trata de alemães, islandeses e iranianos, é prova da superioridade do treinador arcaico.

Da mesma forma que os caçadores-recoletores tinham uma noção muito apurada do espaço e da presença de mamutes nas redondezas, noção que se tornou supérflua quando os nossos ancestrais se fixaram em aldeias e os mamutes se extinguiram, também estes treinadores se orientam em função dos números nas camisolas poupando assim os cérebros a uma acumulação de informações inúteis como Schweinsteiger ou Pouraliganji. Caro leitor, numa situação idêntica, preferia referir-se ao avançado iraniano como Jahanbakhsh ou como o número 18 do Irão?

Óscar Ramírez pode não saber o nome de Eden Hazard, mas foi suficientemente astuto para perceber qual o jogador adversário que lhe causou mais problemas. Não se pode exigir mais a alguém que, com os seus modos atónitos de meio da tabela e um olhar descaído de boleros tristes, nos transporta para a época dourada da nossa infância em que os treinadores tinham fartos bigodes e muita ratice.

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Apesar de se saber que a Alemanha não se dá bem com os ares da Rússia, seja por causa do general Inverno ou da agente da polícia municipal Primavera, ninguém esperava uma entrada tão dócil dos alemães e um arranque tão voraz dos mexicanos. A única explicação residirá na diferente dieta sexual a que as duas seleções foram submetidas.

Joachim Löw, severo como um luterano, proibiu os seus jogadores de terem relações sexuais durante o estágio. Enquanto isso, os mexicanos confraternizavam com senhoras de muito bem fazer. Durante o jogo, Chicharito, Lozano e companhia correram como se tivessem à sua espera não setenta virgens, mas vinte e três acompanhantes de luxo. Já os alemães desperdiçaram toda a primeira parte a correr com a motivação de quem sabe que, no final do jogo, terá à sua espera um pacote de amendoins, água tónica do minibar e, com alguma sorte, um filme erótico na ZDF.

Como tal, a nação mexicana bem pode agradecer o sucesso às mulheres dos jogadores como Shantal Mayo, a metade da laranja de Héctor Herrera, tão bom a organizar o meio-campo como a organizar bacanais. Enquanto na comédia de Aristófanes, as mulheres gregas faziam uma greve de sexo para acabar com a guerra, as mexicanas suspenderam a descrença para que os maridos ganhassem um jogo. Em declarações a um canal de televisão, Shantal Mayo explicou tudo: “[Herrera] disse que as mulheres não eram acompanhantes, mas sim convidadas e familiares de não sei quem, mas garantiu que ninguém pagou os serviços de mulheres.” E foi assim que a Alemanha perdeu o jogo.