1 Quando partíamos para as eleições constituintes em 1975, o golpe falhado do 11 de Março produziu um sobressalto, abriu as portas ao PREC (processo revolucionário em curso), provocou uma guinada mais à esquerda, favorável ao radicalismo. Levou alguns dias a acomodar as alterações na organização do poder, como a extinção do Conselho de Estado e a criação do Conselho da Revolução. As eleições constituintes foram adiadas de 12 para 25 de Abril. E, para pôr rédea curta em matérias cruciais do pensamento revolucionário, o MFA impôs um pacto aos partidos, que tiveram de assinar em 11 de Abril: a Plataforma de Acordo Constitucional.

Segundo o Pacto MFA/Partidos, a fiscalização da constitucionalidade material competiria unicamente ao Conselho da Revolução. Os juízes seriam os militares membros do Conselho. Dizia: “O Conselho da Revolução terá por funções (…) decidir com força obrigatória geral sobre a constitucionalidade das leis e outros diplomas legislativos, sem prejuízo da competência dos tribunais para apreciar a sua inconstitucionalidade formal.” Era uma tarefa revolucionária, uma competência inscrita na legitimidade revolucionária.

Por que não aconteceu assim? Por que não tivemos, afinal, juízes constitucionais vestidos com casaco político militante?

Porque, sete meses depois, houve o 25 de Novembro, que, como aqui já escrevi: “Não foi mais um contra-golpe. Foi o fim dos golpes.” O novo diálogo entre o poder político-militar e os sectores democráticos da Assembleia Constituinte abriu a revisão daquele Pacto, permitindo que a Assembleia Constituinte (onde o maior partido era o PS) pudesse concluir o seu trabalho sem aquele colete-de-forças. O resultado seria a 2.ª Plataforma de Acordo Constitucional, assinada em 26 de Fevereiro de 1976.

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2 Uma das grandes modificações foi na fiscalização da constitucionalidade das leis. O Conselho da Revolução mantinha a competência decisória, mas passava a ser assistido por uma Comissão Constitucional, que emitia parecer obrigatório na fiscalização em abstracto, prévia ou sucessiva, e tinha composição de perfil jurisdicional: quatro juízes (designados, um, pelo Supremo Tribunal de Justiça e, três, pelo Conselho Superior de Magistratura) e quatro “personalidades de reconhecido mérito” designadas, uma pelo Presidente da República, outra pela Assembleia e as outras duas pelo Conselho da Revolução, devendo uma, pelo menos, destas duas ser jurista de reconhecida competência. A Comissão Constitucional tinha ainda a competência de julgamento nos recursos de fiscalização concreta.

Foi o embrião do Tribunal Constitucional, onde seria difícil entrar a camisola partidária. Cada membro da Comissão teria as suas convicções, mas não era isso que valia, nem para escolher, nem para excluir. A Plataforma fixou que “os membros da Comissão Constitucional exercerão funções até ao termo do período de transição e serão independentes e inamovíveis, aplicando-se-lhes, quando no exercício de funções jurisdicionais, as regras sobre garantias de imparcialidade e irresponsabilidade próprias dos juízes.” Clarinho, clarinho. Ninguém suscitou o “secretismo” das escolhas.

Assim ficou nos artigos 283.º e 284.º da Constituição, aprovada em 2 de Abril, que entrou em vigor em 25 de Abril de 1976, dia das primeiras eleições legislativas do regime democrático.

3 Na revisão constitucional de 1982, com a extinção do Conselho da Revolução, a fiscalização da constitucionalidade foi confiada ao Tribunal Constitucional, então criado com 13 juízes. Na composição do Tribunal, deu-se prevalência à Assembleia da República, que designa dez juízes, cabendo-lhes cooptar os outros três. Dos 13, um mínimo de seis deveriam ser juízes de outros tribunais e os demais obrigatoriamente ser juristas. É o regime estabilizado até hoje.

Os regimes de designação parlamentar exigem, regra geral, concertação entre os dois maiores partidos, PS e PSD. Assim tem sido com o Tribunal Constitucional: dez juízes são eleitos na Assembleia da República por maioria de dois terços dos deputados presentes (desde que superior à maioria absoluta dos membros). Até final dos anos 80, o CDS ainda participou nestes arranjos, por direito próprio, mas, desde então, apenas se o PSD lhe concedia um lugar, do mesmo modo que o PS, se quisesse, podia fazer o mesmo à sua esquerda. Ultimamente, PSD e PS concertam a decisão quanto aos dez juízes a designar.

Esta concertação, porém, não ia além da mediação política indispensável para viabilizar a designação parlamentar. Os juízes escolhidos eram pessoas de créditos firmados, no plano científico, académico ou judicial – e com currículo de independência, até para poderem honrar a independência estatutária da função.

4 As fórmulas de designação parlamentar têm riscos de partidarização. Mas a estatura dos líderes nacionais e dos dirigentes em geral assegurava, desde 1982, que tudo corresse, de forma geral, bem. Ninguém atacou o “secretismo”. Havia uma elevação, um sentido de Estado, um princípio geral de decência, que permitia que os partidos, decidindo a alto nível, não excluíssem fora de critérios técnico-científicos, nem escolhessem agentes partidários, com deveres de obediência a ordens, instruções ou recados. Não. O que se sentia é que a ligação ao partido que nomeara se esgotava no momento da nomeação, conforme ao imperativo constitucional: “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.” (art.º 203.º)

Nunca se disse que o juiz A era do PS e o juiz B do PSD, ainda que se o soubesse. Porque não estavam lá por isso, mas pelas capacidades técnicas, doutrinárias, jurisprudenciais, académicas, científicas. E menos se viu, nem indirectamente, nem (muito menos) directamente, exercer pressão, sobre este ou aquele juiz, para decidir ou votar neste ou naquele sentido, por ser do PS ou do PSD, ou sequer da “esquerda” ou da “direita”. Todos compreendiam que o Tribunal Constitucional não era um palco político-partidário.

5 O sistema funcionou geralmente bem, com o recato ditado pela dignidade da função e pela experiência. Mas, ultimamente, à esquerda, a partir da bancada do PS, decidiu-se estragar. Está em curso a transformação do Tribunal Constitucional num palco político-partidário. Os primeiros a compreender como é grave esse erro deveriam ser os deputados, porque escolhem mais de três quartos do Tribunal. Os segundos são os próprios juízes do Tribunal, que o devem impedir.

Entre outras funções, o Tribunal julga da constitucionalidade das leis que resultam precisamente dos palcos político-partidários: a Assembleia da República e o Governo. Por isso, não é boa ideia para o prestígio da democracia e o crédito da justiça, procurar “juízes-agentes”, como quem quer comprar o árbitro no desporto. É desastroso partidarizar o Tribunal Constitucional.

A ambição aponta para juízes constitucionais por conta, como era o paradigma do 1.º Pacto MFA/Partidos: juízes de casaco político militante, em que a apreciação da constitucionalidade era tarefa revolucionária apenas ao alcance de juízes alinhados contra o “pensamento anacrónico”. Um reaccionarismo de esquerda, de volta a 1975. Por sinal, por sugestão de modelos norte-americanos que nada têm a ver connosco, sejam as nomeações presidenciais, sejam os “hearings” no Congresso. O nosso sistema não é o sistema judicial dos Estados Unidos.

houve notícia, há um ano, de exclusão de candidatos ao Tribunal com aptidões sólidas e evidentes: Jorge Pereira da Silva e Luís Pereira Coutinho. Delito? Suspeita de opinião sobre a eutanásia. José Figueiredo Dias, primeiro, rejeitado, seria eleito à segunda. Agora, uma campanha montada discrimina como candidato o professor de Direito António Almeida Costa, com créditos académicos firmados, apontando posições que tomou na sua carreira. Delito? Posições sobre o aborto. Li um comentário de Vital Moreira, em que pode ter sido enganado, pois parece atacar afirmações de agora de Almeida Costa, quando cita textos de 1984. E verbera: “não abandonou posições próprias da extrema-direita religiosa”. Este juízo contamina demasiado: serão de “extrema-direita religiosa” todos os Papas; e terão sido de “extrema-direita religiosa” todos os nossos Códigos Penais desde os princípios do séc. XIX, incluindo os liberais e o que atravessou a 1.ª República até ao de 1982 inclusive, antes da reforma pontual de 1984?

O propósito de gestão político-partidária do Tribunal é claro: o novo juiz a cooptar «terá de obter, para ser eleito, pelo menos sete votos a seu favor, o que significa que além dos cinco juízes ‘de direita’, precisa também da concordância de dois ‘de esquerda’» – esclarece uma das primeiras notícias, que logo identifica, respectivamente, os indicados pelo PSD e pelo PS.

Na campanha, lançada a partir da comunicação social, juntou-se à última hora um comentário desgarrado feito acerca do segredo de justiça. O facto é requentado, passado há mais de um mês. O comentário é isolado para tiroteio e nem tem, em si, a ver com as funções de juiz. Não é uma opinião, mas dito irrelevante de que não resulta qualquer consequência. E finge-se ignorar que a violação do segredo de justiça é dos problemas mais sérios do Estado de direito em Portugal, atingindo até brutalmente direitos humanos, como na frequente publicação de escutas, incluindo com conversas que nada têm a ver com a investigação. Estavam à mão.

A campanha que se montou visa o Tribunal: nem sequer só os dez juízes eleitos pelos deputados, também os três cooptados. Não chega ter reitoria sobre dez, é preciso mando sobre os treze. Era difícil imaginar tanta intolerância e febre directora sobre juízes de um tribunal supremo e estatutariamente independentes. Escolhendo assim, onde fica a dignidade da função?

6 Se isto avança, a composição do Tribunal Constitucional ficará em farrapos. O Tribunal também, atropelado pelo iliberalismo do poder. Uns começaram, outros procurarão ripostar. Esta é, de modo um pouco tolo, uma resposta transatlântica a Donald Trump. Mas o figurino fica instalado e estimularemos os nossos Trump. De ciclo em ciclo, será sempre pior.

Ai de quem, em matérias de decisão difícil e sensível, votou vencido. Vae victis! Ai dos vencidos! Ai de quem, nessas matérias, votou do lado dos vencedores, mas ficou, depois, vencido. Vae victis! Ai de quem ensinou bem, com ciência e pensamento, mas de que o pensamento não é o da maioria, muito menos o da absoluta. Vae victis! Ai de quem, noutro tribunal, num caso emblemático, julgou, e julgou bem, mas nesse acórdão fez considerações que não têm o beneplácito das vigilantes da maioria. Vae victis!

A qualquer jurista (incluindo juízes) que aspire, um dia, ser Juiz do Tribunal Constitucional, o conselho ajustado é que não escreva em matérias sensíveis mais do que o equivalente a isto: “É Pedras Salgadas, mas também pode ser Vidago”. Ou, preferindo: “É Vidago, mas também pode ser Pedras Salgadas”.

Pode votar acórdãos, mas não escreva votos de conformidade ou de vencido, sobretudo demasiado explicados. Não vá além de explicações como estas: “Votei sim, porque me pareceu bem, salvo melhor opinião”; ou “Votei não, porque não me pareceu suficientemente bem, salvo melhor opinião”.  E nunca escreva lições sobre tais matérias. Só aulas orais – e sem gravação. Se necessário, invoque e garanta o seu direito à protecção de dados.

Não pense também, como garantia de nomeação, em alinhar declarações com as intervenções da vigilante deputada Isabel Moreira ou similar. As maiorias mudam, o pensamento social idem, os ventos também. Tal como andam a açular um professor de Direito, cientista reputado, pelo texto que escreveu em 1984, qualquer coisa que escreva hoje ainda poderá pô-lo no grelhador em 2060. Cautela! É preciso muita cautela. Como no antigo regime: “Respeitinho! Respeitinho!”

7 O que se armou em torno do Tribunal é, democraticamente, uma selvajaria. Surpreende não haver mais posições a condenar severamente estes abusos e desmandos: a demolição do Estado de direito, o ataque directo à independência judiciária, a intromissão na decisão interna exclusiva de um tribunal, a pressão pública (talvez também privada) para condicionar e induzir a decisão de juízes. É o abaixo de zero do funcionamento judiciário num país livre e de leis.

Manifestações em frente do Tribunal Constitucional!? Uma Associação Portuguesa de Mulheres Juristas amalgamada no conjunto de associações femininas ou feministas que pressionam o Tribunal? Ao que este caso fez chegar.