Os nossos escritores são, em regra geral, uma seca por serem tão solares. Estamos tão talhados para o brilho do astro-rei que somos um país de textos cegos, encadeados, enxaquequeados em auras que nos levam ao vómito. Em Portugal, um escritor é um visionário seguro do seu papel de encaminhar os outros para a luz. E o nosso problema é precisamente o excesso dela. Falta-nos trevas.

Os nossos ateus têm fé, os nossos transgressores cumprem o código da estrada, os nossos bandidos têm bom coração. Somos um festival de feelings tornado nação, uma aula de cidadania com delírios de grandeza. Claro que quem gastar cinco minutos a realmente abrir os olhos além deste veraneio moral, topa o twist. Os nossos filhos pensam em suicídio antes de poderem votar, temos medo de sair à rua por causa de uma gripe, e a única satisfação cívica ao nosso alcance é o regresso à arte do linchamento (neste caso, em versão web). O sol proverbial que nos ilumina é uma treta.

Afinal, as trevas que nos faltam são apenas aquelas que, não confessando, nos dominam. Vivemos como vampiros na praia porque arranjámos burkas à prova de raios ultra-violeta. Mas, e como os miúdos dizem agora, no inglês original, “at the end of the day”, temos pouco de dia e muito de fim. O que escrevemos, seja nas páginas oficiais da imprensa ou nas caixas de comentários da net, encena a paz que nem sequer nos dá uma noite de sono, não fosse a medicação. E repetimos roboticamente aquela frase sinistra do Raul Solnado: “façam o favor de ser felizes”.

Talvez por a felicidade ser esse obséquio obrigatório, ela é tão pouco generosa para nós. Somos maus a ser felizes porque tomamos a felicidade bússola quando, na melhor das hipóteses, ela pode ser um dos aconchegos de chegar ao destino. Como muitos dos antigos, sei que desejar a alguém que alcance o seu desejo é das maldições mais eficazes. Por experiência própria, já me tramei bastante por Deus me dar o que queria.

Logo, faço votos que, no início de um novo ciclo, leiamos textos mais ensombrados. Vou até recomendar um clássico da melhor patifaria literária: “Margarita e o Mestre” de Mikhail Bulgakov. É um livro inesquecível também porque demonstra que a humanidade é bem descrita a partir de uma fábula alucinada de pactos com o Diabo: há bruxas em vassouras, há gatos falantes, há Moscovo por conta de Satanás. É um belo sermão em forma de show de chacota.

A nossa pobreza literária (que é necessariamente espiritual) vê-se no mito da página em branco, incorruptível, fadada para ápices e imune ao íman de um bom buraco. Há um déficit de trevas no que lemos e escrevemos e isso torna-nos crédulos. Se reconhecêssemos as bruxas e os demónios que sobrevoam as nossas cidades, veríamos a luz real—a que vem do contraste.

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