No último quartel do século XIX, os decisores políticos e diplomatas britânicos tomaram uma decisão tão difícil quanto notável. Perceberam que o seu declínio internacional era inevitável e, em vez de lutarem contra ele como fazem a esmagadora maioria dos estados nas mesmas condições, começaram a preparar a sua nova condição no sistema internacional.

Nem tudo correu como previram, evidentemente, porque na vida política aquilo que outros fazem e pensam está para além das possibilidades de cada país. Não era possível prever as transformações internas na Rússia e na Alemanha. Mas protagonizaram uma das muito poucas transições de poder pacíficas com uma das novas potências emergentes, os Estados Unidos da América, mantendo assim, nas décadas seguintes, uma influência internacional muito superior ao seu poder real.

Chegados aos anos 2010, percebemos que há muitos britânicos que nunca perdoaram esta ousadia, leia-se, perder o império sem dar luta. Ainda a semana passada, com a escolha de Boris Johnson para primeiro-ministro, tivemos um exemplo bem claro de que o espírito da velha Inglaterra está bem vivo e veio para ficar. Sob forma de ilusão.

É certo que a “fadiga do Brexit” pode ter ajudado. Três anos de paralisação em Westminster terá levado alguns tories a estar por tudo, e escolher quem, de uma forma ou de outra, prometesse sair da União Europeia.

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Mas a razão principal é a fantasia de uma grandeza pós-imperial, com os ingredientes do império perdido. Senão, veja-se: no seu primeiro discurso no Parlamento, Boris Johnson prometeu que a Grã-Bretanha – sublinhe-se, depois do Brexit – será o “melhor lugar à face da terra”. Na sua visão, Londres será a mais próspera economia europeia. Vai ser o centro de uma teia de redes comerciais suportadas por moderníssimas infraestruturas e ligações tecnológicas, que voltarão a pôr os britânicos no centro do mundo. O grande plano de Johnson só estará concretizado em 2050. Mas o primeiro-ministro não duvida que o seu mandato é o “início de uma nova era dourada para o [nosso] Reino Unido”.

Estas promessas têm três problemas fundamentais. O primeiro é óbvio: o programa não é, simplesmente, concretizável. Mas como o prazo é longo, não há razão para preocupações. Haverá sucessores suficientes para se responsabilizarem pelos compromissos de Boris Johnson que vão ficar por cumprir.

O segundo é que, para se ser o centro de qualquer coisa, é preciso que outros aceitem um lugar na periferia. O plano conta com que um conjunto de atores internacionais façam exatamente aquilo que o Reino Unido quer – entre outros é preciso a ativa colaboração dos Estados Unidos e dos países da Commonwealth (e mesmo da União Europeia). Mas nada garante que estes estejam dispostos a contribuir para os seus desígnios.

O terceiro, e talvez o mais grave a curto prazo, é que esta narrativa de grandeza pós-imperial pode ser muito sedutora para dois grupos no Reino Unido: os ingleses que acreditam que a União Europeia lhes roubou a soberania e a identidade nacional contendo-os nessa mesma procura de grandeza; e os afetados pela globalização desregulada protagonizada pela senhora Thatcher. Estes acreditam numa de duas ideias – ou em ambas simultaneamente: que a tal “soberania” lhes trará melhores condições económicas ou que tem de se virar a página de um capítulo da história dos conservadores que só lhes trouxe humilhações e agruras.

Mas não seduz os escoceses que não só preferiam ficar na União Europeia como já dão mostras de descontentamento relativamente às posições de Johnson. Se restassem dúvidas, o governo da Escócia dissolveu-as anunciando a sua exigência de um novo referendo sobre a independência da região. O triunfo da fantasia de grandeza pode vir a custar a integridade do Reino Unido.

Num dos seus mais difíceis momentos políticos da sua história, os decisores e diplomatas britânicos tiveram a inteligência de preparar o seu próprio declínio imperial. Ainda hoje, a transição de poder pacífica entre o Reino Unido e os Estados Unidos é a exceção que confirma a regra. Tal como no final do século XIX, hoje o sistema internacional não está para brincadeiras, com o futuro da hierarquia de poder em aberto. Mas ainda assim, Boris Johnson encarna uma das mais perigosas posições políticas que não deixam de ser comuns em tempo de crise: perceber as nostalgias dos cidadãos e chegar ao poder prometendo o inalcançável.

Há poucas coisas piores do que tomar decisões políticas com base pressupostos falsos. A seu tempo, Londres perceberá o erro. Esperemos que não seja tarde de mais. A bem dos britânicos e dos restantes europeus.