No ano 59 antes de Cristo, três homens formaram aquele que se considera ser o primeiro triunvirato da história. Faziam parte Júlio César, um desconhecido, mas promissor jovem cônsul, Pompeu, um herói de guerra muito popular entre os romanos, mas desprezado pelo senado por não ter ascendência nobre – e Crasso, um homem muito rico, mas sem qualquer influência política. Os três uniram-se informalmente, para, em conjunto, obterem o que faltava aos outros. Na realidade os objetivos de cada um eram muito diferentes, ainda que temporariamente convergentes – e o Triunvirato acabou por se desfazer.

Como demonstra a história, os triunviratos são desiguais e assimétricos. Nem todos os membros têm o mesmo papel ou o mesmo poder, ainda que tenham um objetivo comum. O Triunvirato Romano queria governar o império, o novo Triunvirato Transatlântico está menos preso a contingências de interesse do que a uma ideia comum: a de preservar a ordem liberal transatlântica. À cabeça está Angela Merkel. Como já foi escrito aqui, desde janeiro deste ano, a chanceler alemã alargou o âmbito do seu papel internacional, delineou novas estratégias – das quais fazem parte uma liderança (cada vez menos relutante) do Ocidente democrático, capaz de enfrentar ameaças à nossa forma de vida. Há uma ameaça interna, que são os populismos que continuam bem vivos no desafio do pluralismo e na divisão das sociedades; uma outra ameaça meia interna meia externa, que é a radicalização violenta dos cidadãos estrangeiros e europeus que dá origem a ataques terroristas – e, finalmente, uma nova ameaça externa: o Brexit e a presidência de Donald Trump, que põem em risco as condições necessárias para a estabilidade internacional.

O segundo membro do Triunvirato é Emmanuel Macron. Recém-eleito, o novo presidente francês não tem parado de exibir as suas credenciais liberais. Apressou-se a ir conversar com Merkel para juntos reafirmarem o renascimento do eixo franco-alemão como espinha dorsal da União Europeia, a ser reformada, mais poderosa e autónoma (os tempos não estão para brincadeiras), como aliás repetiu vezes sem conta na campanha eleitoral. Para quem esteve mais atento, lembra-se que Macron subiu ao palanque para o discurso de vitória ao som da nona sinfonia de Beethoven, o hino da UE, e não da Marselhesa. Se a sua atitude passou despercebida, multiplicou-se em atos simbólicos: o enérgico aperto de mão a Trump, por exemplo. Ou a forma como ralhou publicamente com Putin pelos atropelos aos direitos humanos da comunidade LGBT russa, um bocadinho à maneira das presidências liberais americanas.

O terceiro membro do Triunvirato é Barack Obama. Sem poder executivo de qualquer espécie, o ex-presidente norte americano tornou-se um símbolo da democracia liberal e do entendimento transatlântico com base em valores comuns. Veio visitar Merkel a Berlim, em dois momentos decisivos: antes de terminar o mandato e na véspera da primeira visita de Donald Trump à Europa para participar nas cimeiras da NATO e do G7. Nem Merkel nem Obama fizeram segredo de que as suas conversas privadas e públicas (houve uma espécie de comício pró-democracia nas portas de Brandemburgo) são sobre o futuro do regime democrático e as relações transatlânticas.

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Desconfio que este Triunvirato estás por trás das declarações tão assertivas quanto inesperadas de Angela Merkel (a porta-voz), na noite em que Trump deixou a Sicília. Recordo-vos que, em duas ou três frases, a chanceler mudou abruptamente o rumo de 70 anos de pensamento estratégico europeu: a Europa tem de tomar o seu destino nas suas próprias mãos, uma vez que “o tempo em que podíamos contar com os outros acabou, em certa medida”. Os outros, ficou claro, são os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. E a Rússia, que passou a ser o vizinho com quem se deve tentar “manter boas relações” – e, para bom entendedor, meia-palavra basta. Assim, em mais ou menos dois minutos, entre duas cervejas na Baviera, ditou-se um novo rumo para a política externa europeia.

As afirmações Merkel levantam alguns problemas. Primeiro desconhecemos como é que a Europa se vai reconstituir para este desafio gigante: a União está longe de estar unida. Ainda há sérios ressentimentos dos países do Sul, devido à austeridade, os partidos populistas-extremistas continuam a ter largas bases de apoio (antieuropeias) que se opõem aos valores do Triunvirato. Segundo, as elites do Kremlin devem estar a esfregar as mãos de contente. Uma Europa afastada do chapéu de chuva da NATO é uma Europa fraca. Não tenhamos ilusões quanto à fragilidade militar do continente, que não se resolve de um dia para o outro. Para um investimento consistente na defesa, é preciso mudar mentalidades. Em terceiro lugar, Merkel pôs o Reino Unido e os Estados Unidos na mesma categoria. As palavras de Merkel empurraram a Grã-Bretanha para uma posição incómoda. Theresa May ficou sem opções relativamente ao seu posicionamento internacional, o que não só potencia uma parceria hostil com Trump contra os avanços da Europa, como dificulta as negociações do Brexit e dá razão, à posteriori, aos eleitores que votaram na saída.

Talvez o problema mais importante seja que as palavras de Merkel contam com uma premissa que está longe de estar confirmada: que Trump estará no poder por pouco tempo e que será substituído por alguém, republicano ou democrata, que volte a valorizar a relação transatlântica. Mas nada garante que Trump perca as próximas eleições. E mesmo que assim aconteça, faltam ainda mais de três anos, um espaço de tempo em que muito pode mudar. E para onde ainda não sabemos.

O Triunvirato Liberal é frágil. Obama pode ser agora uma visita frequente e carismática em Berlim, mas só pode emprestar prestígio e influência. Macron tem ainda que passar o teste mais difícil, a eleições legislativas de julho. E se Merkel ficar mais sozinha terá muitas dificuldades em fazer cumprir as suas palavras. A história diz-nos que os triunviratos se fazem e desfazem. César e Pompeu tonaram-se inimigos. Mas ainda assim, prefiro uma Europa transatlântica que quer defender ativamente os seus valores que uma Europa submissa a uns Estados Unidos que já ninguém reconhece.