Chamem-lhe defeito profissional. Eu prefiro defini-lo como perspicácia profissional. Sou reumatologista, pelo que me treino há muito para identificar doenças dolorosas, mas invisíveis; problemas graves, que fustigam a vida dos pacientes, cansados de andarem de especialista em especialista até que a sua doença – que não se vê, mas muito os perturba – ganhe um nome. Esse é o momento a partir do qual se pode definir uma estratégia de tratamento.

Ora, o que se passa na saúde em Portugal vai muito para lá do visível à superfície. E o visível já é gravíssimo. Contudo, temos de parar, escutar o que o doente Serviço Nacional de Saúde (e, por consequência, o Sistema Nacional de Saúde) nos diz. Observá-lo. E definir um plano para o ajudar. É aí que esta perspicácia profissional é útil.

À superfície, temos assistido a promessas do Governo de uma solução para o problema das urgências obstétricas, para as dificuldades de escalas nas urgências gerais, para a falta de médicos de família para 1,5 milhões de pessoas… A lista continua e é longa. E a solução supostamente milagrosa passa sempre por um grupo de trabalho, uma comissão, um comité, anunciados com pompa e nomeados em Diário da República.

Mas onde estão as propostas? Há uma altura em que o estudo destes grupos tem de ser mostrado publicamente e em que as suas ideias têm de ser aplicadas. Caso contrário, não há tratamento e o doente Sistema de Saúde continua a definhar, com riscos cada vez maiores para a qualidade dos cuidados e a segurança dos portugueses. E é assim que o paciente aqui anda, de especialista em especialista, aguardando que a sua doença ganhe um nome e se defina a estratégia de tratamento. Passa o tempo, a promessa do governo renova-se, um novo grupo surge para abafar a memória do anterior, cujos resultados são desconhecidos. E nada sucede. Uma e outra e outra vez.

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À superfície, também há escribas interesseiros que secundam o governo e que, em artigos disparatados, acusam os médicos internos de abandonarem o SNS depois de o Estado português lhes ter pagado a formação. Analisemos para lá da superfície: com as aposentações dos mais velhos e a saída dos médicos de meia-idade (há muito saturados de anos de promessas incumpridas), são estes internos que seguram os serviços nos hospitais. Muitos deles ultrapassaram já 650 horas a mais nas urgências este ano. Com as horas a mais, os sacrifícios e os salários inadequados para as funções que exercem, há muito que pagaram a formação devida ao Estado português.

E enquanto estes internos estão presos a situações emergentes, fica para trás a sua formação na especialidade e a aquisição de competências. Haverá consequências no futuro dos cuidados em saúde.

Outra solução a ser tomada de imediato é o robustecimento dos Cuidados de Saúde Primários. Se as urgências estão cheias, forçando os internos a bancos sucessivos e levando os médicos mais velhos à saída, já extenuados, é porque esta porta de entrada no SNS não está a dar a resposta de que os cidadãos necessitam.

À superfície, tem-se igualmente posto em causa a capacidade de intervenção da Ordem dos Médicos, depois de o Ministério da Saúde ter pedido um parecer à Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a definição de número mínimo de profissionais nas equipas de urgência. Se a Ordem dos Médicos não tem, como concluiu o Conselho Consultivo da PGR, capacidade legal para esta definição, tem a legitimidade do conhecimento sobre a realidade no terreno para propor estes mínimos.

Um sinal de boa-fé do Governo seria ouvir e estudar o proposto pela Ordem dos Médicos e avançar ele próprio com o regulamento.

Em nome da saúde de todos, fica aqui prescrito o tratamento.