A doença Covid-19 é como um Tsunami que atinge o nosso País. E há duas estratégias possíveis para lidar com ela.

Podemos aceitar que é inevitável que o Tsunami passe por todos nós. E então o melhor será  encaminhar as águas, forçando-as a passar por canais de drenagem, onde sabemos que causarão o menor dano, erguendo criteriosamente apenas algumas barreiras, para evitar que atinjam locais onde o estrago seria maior. Esta estratégia implica aceitar a inevitabilidade da passagem do Tsunami e do prejuízo que ele implica, muito embora o tentemos minimizar. E dura o tempo que o Tsunami demorar a atravessar o País. Será esta a estratégia de “achatar a curva e deixar criar a imunidade de grupo”. É a estratégia que foi seguida na Suécia.

Em alternativa, podemos decidir que “o Tsunami não passará!”. Então teremos de erguer uma enorme barreira ao longo de toda a nossa costa. Esse dique deverá ser muito forte e sem falhas. E teremos de o vigiar, de forma constante e atenta, ao longo de toda a costa, refazendo-o sistematicamente onde quer que ele abra rachas e deixe passar a água. Porque essa água que se escapa por entre as rachas irá provocar inundações aqui e ali, de forma não controlada, visto não haver outras barreiras atrás desse dique. Teremos, é claro, de manter tudo isto enquanto o Tsunami continuar a existir, demore o tempo que demorar. Será esta a estratégia de “esmagar a curva e chegar ao zero”. É a estratégia que tem sido seguida e procurada no nosso país.

A analogia Tsunami-Covid tem falhas, claro. Mas permite perceber facilmente os problemas de  cada uma das estratégias.

Na primeira estratégia, aquela em que deixamos o Tsunami passar, apenas procurando controlar por onde o deixamos escorrer, e a que ritmo o faz, o problema é decidir os canais por onde conduzir a água, onde esta cause o menor dano. E a questão mais difícil ainda é aceitar esse dano, como necessário e inevitável.

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Desde Março e Abril que sabemos muitas coisas relacionadas com os problemas que esta estratégia implica, e hoje sabemos ainda mais. Sabemos que quase metade das pessoas não tem sintomas e que mais de 90% não precisa sequer de ser internada. E sabemos que a mortalidade (provavelmente ~0,5%, de acordo com os dados do inquérito seroepidemiológico do Instituto Ricardo Jorge) ocorre quase sempre em indivíduos muito idosos e frágeis, com uma média de idades superior à esperança média de vida. Também sabemos que as crianças praticamente não têm doença quando infectadas, e que não há, no mundo inteiro, registo de professores infectados pelos seus alunos. É assim fácil perceber “os canais” por onde podemos deixar passar o Tsunami-Covid e obter a imunidade de grupo: deveríamos deixar abertas e em pleno funcionamento as creches, as escolas e as universidades, e permitir que todas as pessoas com menos de 70 anos prossigam com as suas actividades, organizando medidas de protecção especial para os mais idosos e frágeis (não deixando de respeitar a sua liberdade individual, permitindo que escolham que tipo de limitações querem para si próprios e que riscos estão dispostos a correr).

Na segunda estratégia, a do “não passará”, o problema são os custos de erguer e manter uma barreira total e sem falhas, bem como a dificuldade em monitorizar e corrigir constantemente as fendas e gerir as inundações que surgirão inevitavelmente. E a questão mais difícil ainda é o tempo muito mais prolongado (e desconhecido) durante o qual teremos de manter esta estratégia.

Os custos inerentes a esta segunda estratégia foram sempre evidentes e de previsão fácil, quase imediata. Logo no início, foram muitos os que tentaram chamar a atenção para a previsível queda do PIB, o aumento do desemprego, o encerramento de empresas, o aumento do défice e da dívida pública do Estado, a crise económica e financeira, o medo generalizado, as consequências de negligenciar as outras doenças e o aumento de novos casos de doença por ansiedade e depressão… nada disto é surpresa, tudo era esperado e foi avisado.

E ignorado.

A questão da duração da estratégia do “não passará” foi também um problema previamente anunciado. Com esta estratégia, poderemos ter à nossa frente muitos meses e anos de tudo isto. Porque, com a estratégia do “não passará”, é óbvio que a imunidade de grupo é impedida, é evitada. Não é surpresa que, também no inquérito seroepidemiológico do Instituto Ricardo Jorge, só 3% da população tenha anticorpos contra o SARS-CoV-2. Haver imunidade de grupo (com 40 a 60% da população com anticorpos) é que seria uma surpresa, que só poderia ocorrer se a estratégia falhasse (ou mudasse). Esta estratégia é toda ela baseada na promessa de uma vacina. Que não sabemos quando (nem se alguma vez) vem. Ou se será sequer eficaz. É uma aposta arriscada.

A escolha entre estas duas estratégias não foi assim apresentada ao povo português. O que foi exposto, inicialmente, foi a necessidade de aplicar medidas para achatar a curva, numa estratégia de intervenções que apenas reduziriam a velocidade de passagem do Tsunami-Covid, com o objectivo bem claro de não deixar que se ultrapassasse a capacidade do sistema de saúde português. Uma estratégia que permitiria a imunidade de grupo e que duraria só até esta ser atingida.

De forma insidiosa, o discurso oficial foi mudando. E evoluiu para a situação actual, em que o objectivo é ter um número sempre menor de “novos casos”, de internados e de mortos (até idealmente chegarem a zero), mantendo sempre as medidas, e equacionando até aumentá-las se os números subirem. Como esta estratégia não permite atingir a imunidade de grupo, a necessidade da sua manutenção, sem falhas nem fraquezas, tem sido repetidamente afirmada. Sempre, sempre, sempre, até haver uma vacina disponível e eficaz. Não existe é um horizonte temporal seguro de quando (ou se) isso irá acontecer.

Penso que não fomos informados desta escolha, entre uma e outra estratégia, simplesmente porque os nossos políticos conscientemente nunca a fizeram. Nunca foram capazes de assumir (ou compreender sequer) a escolha que estavam a fazer e de se responsabilizarem pelas suas consequências. No fundo, o discurso que vamos ouvindo de “a culpa não é minha” e “não havia outra solução”, na cabeça deles corresponde à realidade.

Mas não é verdade. Sempre houve outra solução. E eles são os responsáveis pela estratégia escolhida. Na hora de receber o mérito, rapidamente se chegarão à frente. Na hora de arcar com  a culpa, esfumar-se-ão com habilidade mágica.

E é assim que nos encontramos numa situação de estarmos amarrados a uma estratégia de fazer e manter diques infinitos, de consequências maléficas extraordinárias, contra um Tsunami inevitável, que continua à nossa porta, e que lá permanecerá alguns anos.