É fácil ficar perdido perante o Brexit. Em 2016, houve, por decisão do parlamento, um referendo no Reino Unido sobre a saída da União Europeia. A maioria dos cidadãos votou para sair. Há três anos, no entanto, que o parlamento se nega a cumprir o resultado da consulta popular que ele próprio mandou fazer, através do expediente de recusar uma saída sem acordo, e ao mesmo tempo recusar todos os acordos de saída (esta semana, que um acordo foi aprovado, não foi aprovado o seu calendário).

Há várias maneiras de olhar para esta história. A mais óbvia, mas também a menos interessante, é a do clássico contraste entre dois aspectos da democracia: o plebiscitário e o representativo. Acontece que, neste caso, foi o parlamento que quis o referendo. Porque se escusa agora a respeitá-lo? Não faltam explicações. Desde a esperança de inverter o resultado através de um segundo referendo, até à discussão sobre qual a modalidade de saída que corresponde ao voto de 2016. E, claro, a Irlanda do Norte. Mas além dessas, há outra razão, talvez mais fundamental.

Neste momento, o Brexit é um instrumento na luta de facções que há anos agita os dois grandes partidos parlamentares. Entre os Conservadores, o Brexit serviu para elevar ao poder as facções inconformadas com a linha “moderada” que prevaleceu após o afastamento de Margaret Thatcher. Entre os Trabalhistas, os inimigos de Tony Blair já mandam desde 2015. Daí, a impressão do The Economist de que os dois partidos estão agora entregues aos seus “extremos”. O Brexit deu a estas facções a esperança de experimentar os seus remédios — o socialismo ou o comércio-livre – sem o colete-de-forças europeu. Mas o processo do Brexit está a ajudar também as facções ditas “moderadas” a impedir a consolidação dos actuais líderes. Deste novelo de intrigas, resulta a paralisia do governo. Para cortar o nó górdio, há quem confie em novas eleições. As de 2017, porém, só tornaram tudo mais pantanoso.

Deste ponto de vista, o Brexit não é apenas um capítulo da história das relações entre o Reino Unido e a União Europeia. É um caso, entre muitos outros, da paralisia governativa que afecta as democracias ocidentais desde que se tornou notório que a globalização subverteu — ou está destinada a subverter — os seus arranjos sociais e políticos. Por todo o lado, a “crise da globalização” criou a expectativa de que era possível refundar as lideranças políticas, e de que facções ou correntes até aí marginais podiam aspirar a dominar. Em alguns países, os partidos tradicionais desapareceram, como em França; noutros, as suas direcções mudaram tanto que é como se fossem outros partidos, como no Reino Unido (ou nos EUA). O primeiro efeito destas deslocações políticas foi uma maior polarização e uma maior disponibilidade para recorrer a todos os meios de impedir quem está no governo de governar. No Reino Unido (e nos EUA), é a chicana parlamentar e judicial; em França, é a violência de rua, com os “coletes amarelos”.

Acontece que a globalização também teve outro efeito: a alteração dos equilíbrios entre potências no mundo. Enquanto as políticas ocidentais, protagonizadas por governos mais ou menos estropiados, se tornam mais inconsistentes, os Estados autoritárias expandem a sua influência, como a Rússia no Médio Oriente. Um dia, as opiniões ocidentais vão ressentir a perda de uma grandeza que davam por garantida. Nesse momento, talvez lhes aconteça ressentir também o contraste entre a letargia dos seus governos, e a determinação dos seus rivais autoritários. O risco de se deixarem tentar por más soluções será então muito grande.

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