António Gedeão poetizou que o sonho comanda a vida. Uma frase que ilumina o imaginário de cada pessoa, mesmo quando vive mergulhada em pesadelos. Uma realidade a que, por motivos óbvios decorrentes da temporalidade do poder, a classe política não escapa. A começar pelos titulares dos cargos, sobretudo quando fazem questão de assumir que encaram o exercício do poder como um sacrifício pessoal apenas justificado pelo interesse nacional.

António Costa exemplifica na perfeição o parágrafo anterior. Daí a manutenção em funções depois da dissolução da Assembleia da República. Por isso, o apelo constante a uma futura estabilidade governativa. O novo nome da maioria absoluta. O verdadeiro sonho de António Costa. A possibilidade de o Partido Socialista voltar a dispor da capacidade de apelar ao diálogo enquanto se fecha na torre do poder e impõe a sua visão. A única oficialmente verdadeira. Aquela que permite um raio de ação passível de colocar em causa a essência da liberdade. Uma aparente contradição que se transforma em realidade se a memória não for piedosamente seletiva e permitir a recuperação da imagem de marca do primeiro Governo liderado por José Sócrates.

O tacitismo de António Costa permitiu-lhe perceber que o modelo anterior de geringonça não é reeditável e que uma nova engenhoca, ainda que contando apenas com um parceiro, implicará um preço muito semelhante àquele que Pedro Sánchez se viu obrigado a pagar na vizinha Espanha. Por isso, apesar de as sondagens teimarem em mostrar que nem a vitória socialista pode ser dada como garantida, o apelo costista, mesmo que misturado com um sorriso cada vez mais forçado, mantém-se. Talvez alicerçado na crença de que o sebastianismo continua a fazer parte do imaginário português.

António Costa sabe que, depois da revisão constitucional de 1982, o sistema de Governo passou a ser um semipresidencialismo mitigado. Uma forma de dizer que os poderes do Presidente da República, malgrado as 27 alíneas de competências constitucionais, foram diminuídos e que só em circunstâncias excecionais a magistratura de influência presidencial se assume como uma verdadeira magistratura de interferência.

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Sabe, também, que a maioria absoluta lhe permitirá pôr em prática um sistema de Governo que os politólogos ainda não tiveram tempo de teorizar por inteiro. Algo a que Adriano Moreira chamou o presidencialismo do primeiro-ministro. Um modelo que permitirá a António Costa, se detentor de maioria absoluta, limitar ainda mais o poder real ou efetivo de Marcelo Rebelo de Sousa, sem necessidade de qualquer alteração no texto da Constituição.

Assim, sempre que o Presidente da República decidir usar o veto relativamente a qualquer Decreto que o Governo lhe faça chegar, basta ao primeiro-ministro fazer descer o documento ao Parlamento para que a maioria absoluta o transforme em Lei e o envie de volta a Belém. De facto, se o Presidente decidir vetar novamente, no caso de não haver qualquer inconstitucionalidade no articulado, a Assembleia dispõe do poder de confirmar a Lei e o Presidente vê-se obrigado a promulgá-la.

É esse o verdadeiro sonho de António Costa. Governar à sua vontade. Felizmente, em democracia, a decisão não pode ignorar a vontade dos eleitores. Para desencanto dos interesses instalados. Para esperança de Portugal.