Devia ser obrigatório ir aos Açores. Todos os portugueses deviam conhecer as suas ilhas. Falo dos Açores, mas também penso na Madeira e no Porto Santo, na Berlenga e na Culatra, em todas as nossas grandes e pequenas ilhas. É-nos infinitamente mais fácil voar para Capri, Bali ou Zanzibar do que atravessar o Oceano para ir aos Açores e ficar. E é pena, porque nos Açores temos raízes e, quem sabe, parentes ou familiares de famílias que ainda são nossas.

Tive a suprema sorte de conhecer as nove ilhas entre Maio e Junho de 1989, na altura em que Mário Soares levou aos Açores a sua Presidência Aberta. Foi ele o primeiro Presidente da República a dormir no Corvo e lembro-me como se fosse hoje desse fim de tarde em que ele, no seu melhor, juntou à sua volta senhoras antigas, todas vestidas de negro e lenço na cabeça, umas poucas raparigas ainda muito novas, mais dois ou três rapazes, os únicos que na altura restavam, todos eles já em vésperas de deixarem a ilha para sempre, numa demanda imperativa por uma vida melhor.

Mário Soares demorou-se com eles à conversa, de tal forma que também os homens, mais cismáticos e alguns deles pais com filhos na América, se foram chegando e ficando, porventura encantados com o som invulgar de risos, conversas e opiniões fortes ao entardecer. O crepúsculo nas ilhas é um instante sagrado, em que as conversas ficam mais sussurradas e brandas, numa lentidão de maré a vazar com vagar. As luzes em redor acendem-se em silêncio e a hora é de recolhimento, mas nessa tarde houve mais luz, novidade e movimento no Corvo. Até carros.

Nestes quase trinta anos que passaram, voltei algumas vezes às ilhas, mas nunca mais a todas. Não sendo natural de lá, nem tendo vivido nos Açores, sinto que pertenço à terra. É um sentimento inexplicável, bem sei, mas é o que sinto.

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Voltei aos Açores, ao verde profundo e imaculado dos Açores, esta semana. Fiquei um bom par de dias na Terceira e tive tempo para flanar pela ilha toda, a pé e de carro, subindo aos cumes e descendo pelos vales quase sempre num silêncio extasiado perante tanta beleza e quietude. É impossível não ter devoção pelas ilhas e, também por isso, me pergunto de que maneira podemos levar todos os portugueses a conhecerem uma terra que também é sua.

Corre ainda nesta semana o Outono Vivo, Festival Literário, de Cinema, Teatro, Música e Artes da Terceira, que vai na XIII edição. Começou no dia 26 de Outubro e termina a 11 de Novembro, dia de São Martinho. Durante 17 dias, os terceirenses acolhem gente de todas as ilhas e do continente. Todas as manhãs aterram na Terceira autores, músicos e artistas que chegam para um tempo de proximidade com os habitantes da ilha, onde os círculos culturais se alargam especialmente nestas duas semanas.

A Feira do Livro tem tudo o que têm as melhores feiras de livros do país, mas os momentos de conversa com autores, o encontro entre leitores e escritores são mais intimistas. As pessoas sentam-se com tempo e ficam sem pressas. Dá gosto conversar assim. Ao serão juntam-se pequenas e grandes multidões para assistir aos concertos, para ver as representações e teatros, filmes e documentários que a organização do Outono Vivo promove em cada edição.

Nos dias em que estive na Terceira confesso que o que mais me tocou foi ver o ator Ruy de Carvalho em palco a dizer poesia com voz forte e vibrante. A sua voz de sempre, pois apesar de estar quase a fazer 92 anos, fala e diz como sempre disse e falou. No fim, a plateia aplaudiu massivamente de pé os atores e músicos deste espetáculo inédito, que também é um concerto e foi concebido pela filha e pelo genro de Ruy, Paula de Carvalho e Paulo Mira Coelho. Chamaram-lhe “Trovas & Canções – Atores, Poetas e Cantores” e juntam em palco várias gerações de artistas e músicos. Uma beleza. João de Carvalho, o outro filho do ator, também canta e diz com uma sonoridade encantatória poemas de poetas portugueses. Todos os músicos e cantores foram prodigiosos. Um poema.

O Outono Vivo é uma verdadeira festa que oferece aos ilhéus e continentais uma variedade de eventos e acontecimentos que marcam outro ritmo na ilha. Há de tudo, a todas as horas. Seja, como este ano foi, o lançamento do I Volume de Toda a Poesia do eternamente inspirador Vitorino Nemésio, seja um recital de música de câmara pelo Quarteto Lopes-Graça ou um teatro com a representação do fabuloso conto Mar me Quer de Mia Couto, que conta “uma estória de ilhéus que sem nunca terem saído da ilha, têm saudades de voltar, porque sempre viajaram no mar”, tudo é motivo de alegria e celebração das artes na Terceira.

Nesta, que foi a terceira ilha dos Açores a ser descoberta e cuja capital, Angra do Heroísmo, chegou a ser capital do arquipélago (e até do reino de Portugal, no período em que esteve sob domínio espanhol e quando em São Miguel todos se tinham rendido a esse domínio), nesta ilha cuja posição estratégica no centro do arquipélago lhe valeu um porto intercontinental, onde sempre existiu uma elite cultural, social e intelectual, há muito para ver e conhecer. O facto de pertencer ao grupo central de ilhas permite aos habitantes e naturais sentirem uma maior proximidade das ilhas vizinhas. Em dias de maior visibilidade podem ver ao longe, do cume da serra, os contornos da Graciosa, Pico, Faial e São Jorge.

As cidades de Angra e da Praia da Vitória estão cheias de monumentos e história que apetece conhecer, mas a ilha tem lugares tão deslumbrantes como alguns dos seus monumentos e igrejas. Estou a pensar nos miradouros, de onde se alcança toda a extensão feérica e geométrica do verde das terras em bico, todas muradas de pedra escura bordada a hortenses em fabulosas linhas de contornos rosa, azul e cor de sangue seco, a contrastar com a cal de alguns destes mesmos muros. E também estou a pensar na incrível beleza da luz sobre o azul do mar, o imenso oceano por vezes exposto a essa luz intensa e cristalina, outras vezes coada pelas nuvens que desenham e ampliam as suas sombras na água e no casario das baías.

Até debaixo de terra a ilha está cheia de beleza. O Algar do Carvão, a grande caverna que é também um conjunto de túneis e galerias subterrâneos que serviram para escoar a lava dos vulcões é uma autêntica catedral. Um imenso templo de pedra de todas as cores, com abóbodas suspensas e linhas cavadas, redondas e tão perfeitas que nenhuma mão humana as saberia desenhar.

A Terceira é tudo isto e muito mais. É uma de nove ilhas onde os habitantes são em regra geral muito educados, prestáveis, acolhedores e generosos. Na Terceira os condutores não só não buzinam freneticamente como esperam pacientemente nos cruzamentos que outros passem, mesmo quando estes não observam as regras da prioridade. Na Terceira não vimos lixo no chão. No campo, todas as terras estão impecavelmente tratadas e limpas. Cada horta, cada pasto e cada lameiro poderia servir de reclame turístico da ilha, pois parece não haver uma erva a mais nem uma planta fora do sítio. Também nos campos não se vê um papel nem uma garrafa ou saco de plástico deixado ao deus dará, como encontramos cá. Na pedra das casas e monumentos, na cal das aldeias e vilas também não há grafittis nem tags só para sujar. Dá gosto, insisto. E apetece voltar. Sempre.