Uma desconhecida recebeu ou vai receber 500.000 euros a título de indemnização por se ter despedido antes do fim do prazo contratual das suas funções de vogal do Conselho de Administração e da Comissão Executiva da TAP. Ou seja, voou de uma empresa em que nós, os contribuintes, já enterramos mais de três mil milhões de euros para outra que é também pertencente ao sector público e que, adequadamente, se designa por NAV – empresa de navegação aérea. E daqui alçou novamente voo, desta vez para o Governo, onde desempenha as funções de Secretária de Estado do Tesouro – o mesmo donde sai o dinheiro para alimentar estas frescuras parasítico-socialistas.

É possível que a notícia seja uma fabricação. Porque julgávamos nós que quem se despede antes do termo do prazo tem a pagar, e não a receber, uma indemnização.

Um escândalo. E como o montante impressiona até mesmo o eleitor distraído pelas festividades da quadra e pela prenda que Georgina deu ao marido para efeitos de este arredondar a sua scuderia, veio o comentador-mor da República dizer piedades.

Que disse ele, então? “…que há quem pense que seria ‘bonito’ a secretária de Estado do Tesouro prescindir da indemnização que recebeu quando saiu da TAP para entrar no Governo, ainda que a lei permita etc.”

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Talvez haja quem pense, realmente, senhor Presidente. Mas só se ela for burra é que abdicará de 500.000 euros por causa de uma comoção que vai durar até à próxima roubalheira, isto é, uma ou duas semanas, porque semelhante desprendimento seria uma grande ingenuidade.

A lei permite. E pessoas desprevenidas dirão talvez que não deveria permitir. De modo que, com louvável dedicação, decidi exercitar o meu dever cidadão produzindo um instrumento legislativo que permitiria obviar a este e outros inconvenientes da mesma natureza, e que peço licença para transcrever de seguida. Reza assim:

Artigo 1.º Os membros dos corpos gerentes dos estabelecimentos do Estado e das sociedades, companhias ou empresas:

a) Concessionárias ou arrendatárias de serviços públicos ou de bens do domínio público;

b) Em que o Estado tenha participação nos lucros ou seja accionista, desde que tais posições estejam previstas em diploma legal, em contrato, ou nos respectivos estatutos;

c) Em que, independentemente do condicionalismo referido na parte final da alínea anterior, o Estado seja accionista, com, pelo menos, 10 por cento do capital social;

d) Que explorem actividades em regime de exclusivo ou com benefício ou privilégio não fixados em lei geral;

e) Que beneficiem de financiamentos feitos pelo Estado ou por ele garantidos, bem como as empresas de navegação consideradas de interesse nacional, quando o Estado para elas deva nomear, ou nomeie, delegados ou administradores – quer se revistam da forma de administração, direcção, comissão executiva, fiscalização, ou qualquer outra, não podem perceber remuneração superior à atribuída aos Ministros de Estado.

§ 1.º Quando os resultados da empresa o justifiquem, é permitido aos administradores que não exerçam quaisquer funções públicas ou em empresas privadas receber ainda importâncias até ao limite estabelecido neste artigo se e na medida em que os membros dos corpos gerentes não absorverem tudo o que, nos termos do mesmo artigo, podiam perceber e se aos empregados e trabalhadores da empresa for atribuída participação nos lucros.*

Antes que alguém benévolo se precipite a felicitar-me (e para o fazer teria que não ter reparado nas “empresas de navegação consideradas de interesse nacional, etc. etc.”), esclareço que este articulado pertence à Lei nº 2105, do longínquo ano de 1960.

O ano não deixou saudades; quem assinou a Lei também não; mas nos restos empoeirados de um regime há muito defunto encontram-se por vezes soluções radicais, simples e eficientes, para problemas actuais.

A revogação desta legislação teve origem na ideia de que se era necessário recrutar os melhores para gerir empresas públicas então o estatuto dos gestores em nada deveria ser diferente do dos privados. Creio aliás lembrar-me de que, em tempos idos, era essa uma opinião que subscrevia. Porém, a experiência tem mostrado que a fidelidade partidária, a interferência do titular da respectiva pasta, a definição de objectivos que não são claramente os da eficiência e eficácia da gestão, a ausência do risco de falência, a falta de verdadeira concorrência, tudo contribui para que, quando há dinheiros públicos envolvidos, se deva pôr um travão a comportamentos rapaces. Salazar tinha poucas ilusões sobre a natureza humana e, nisto, tinha razão.

* Chamaram-me a atenção para o facto de na alínea e) e no seu parágrafo 1.º se utilizar o termo “perceber” com o sentido de “auferir”, “cobrar”, o que pode causar confusão. Não me senti autorizado, por estar a transcrever um texto, a alterá-lo, de mais a mais porque é perfeitamente correcto, mas deixo o esclarecimento.