No seu último artigo ”Teatro: Verdade nua e crua”, o P. Gonçalo Portocarrero de Almada chama a atenção para espetáculos de teatro que, independentemente da qualidade ou do número de espectadores, são financiados pelo erário público, logo pelos contribuintes: “Com certeza que o teatro é importante para a cultura nacional e, nesse sentido, é compreensível que o Estado incentive a sua prática. Mas não se compreende por que carga de água os portugueses devem financiar, com os seus impostos, certos projectos, que não só são deficitários como manifestamente degradantes.” Até aqui, nada a acrescentar, o problema surge quando Portocarrero acrescenta: “Todos têm direito à criação e expressão artística, desde que não ofendam ninguém, como é óbvio”.

É interessante como o autor, das duas uma, ou não reconhece o seu artigo como uma criação ou expressão artística ou então acredita que este não ofende ninguém. Como é óbvio, cada vez que expressamos uma opinião, cada vez escrevemos um artigo num jornal ofendemos alguém. Na era das redes sociais em que as reacções daqueles que se ofendem são praticamente instantâneas, a liberdade de expressão, a liberdade de ofender e a liberdade de responder a uma ofensa devem ser dados adquiridos e não considerados excentricidades.

Vivemos num tempo de restrição de liberdades que vão desde o que comemos ao que lemos, ou onde trabalhamos, cabe a cada um de nós e sobretudo àqueles que têm exposição no espaço público proteger esse bem cada vez mais escasso que é a liberdade de expressão.

Inúmeros casos têm vindo a público acerca de pessoas que se ofenderam com quadros, livros, estátuas, filmes, etc, tentando e muitas vezes conseguindo que algumas referências históricas fossem removidas por serem consideradas racistas ou sexualmente explícitas; tal como diz Ricardo Araújo Pereira, “a melhor forma de combater ideias que consideramos idiotas é com outras ideias melhores”, esconder ou tentar reescrever acontecimentos nunca é boa opção, até porque a História tende a repetir-se e é melhor aprender com ela do que tentar esquece-la.

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No Brasil esta discussão ganhou um novo capítulo quando no Museu de Arte Moderna uma performance artística em que o coreógrafo Wagner Schwarz aparece nu e interage com os espectadores, uma mãe incentivou a filha de 4 anos a tocar no pé do homem. O museu defendeu-se com o argumento de que na entrada estava uma referência que chamava a atenção para a nudez incluída na performance, o que não impediu a entrada da criança. Podemos e devemos discutir se é adequado que uma criança de quatro anos seja incentivada pela mãe a tocar num homem nu, daí a concluir que isso é pedofilia vai um passo de gigante. A proporção, o grau dos acontecimentos faz toda a diferença.

Numa carta corajosa publicada pelo Le Monde, Catherine Deneuve e mais 99 mulheres francesas escrevem isso mesmo: “Violação é crime, mas tentar seduzir alguém, mesmo de forma insistente ou desajeitada, não é — tampouco o cavalheirismo é uma agressão machista”. Obviamente, Deneuve foi vilipendiada por ter cometido o “crime” da moda, pensar pela sua cabeça, ter uma opinião e expressá-la sem pedir licença aos guardiães da moral e bons costumes.

A luta pela emancipação e igualdade de direitos das mulheres, a luta contra o racismo e a xenofobia, a luta contra o anti-semitismo e outras tantas, foram lutas que valeram a pena, tentar apagar o registo da sua existência só fará com que seja mais difícil travá-las de novo quando for necessário.

Licenciado em Medicina