Os anos passam e ninguém esquece o dia em que G-Mac surfou a maior onda da Nazaré. Garrett McNamara trabalhou arduamente para aquela onda e, quando finalmente ela se formou, surfou-a em modo mais-que-perfeito. Todos vimos e voltamos a ver a arte com que cavalgou aquela gigantesca massa de água, quase sem acreditarmos que tal coisa fosse humanamente possível. Mas foi, e embora na altura a Nazaré já estivesse no mapa dos surfistas, desde esse dia o país ficou sinalizado também como destino de eleição para profissionais de ondas XXL.

McNamara, o recordista e super campeão havaiano, chamou a atenção de todo o mundo para um desporto praticado por gente muito capaz e muito preparada que, sendo uma elite, recusa o rótulo de elitista. Espantamo-nos com a bravura (e a loucura!) destes surfistas que arriscam a vida pelo prazer, pela adrenalina de enfrentar e vencer inconcebíveis massas oceânicas, mas muitos desconhecem que um deles é nosso. Nascido, criado e treinado aqui.

João de Macedo foi o único português — e é o único europeu! — selecionado para o famoso campeonato mundial de ondas gigantes, o World Surf League 2017, onde todos os surfistas sabem que arriscam a própria vida. Podem não voltar a casa e essa (in)certeza aparentemente dá-lhes ainda mais ‘pica’. Quem não pratica desportos radicais nunca saberá quanto vale essa beira de precipício em que vivem, mas facilmente se deixa fascinar pela coragem dos que arriscam. É o meu caso. Jamais me ocorreria avançar pelo mar adentro sabendo que vou entrar numa montanha russa que atinge alturas e profundidades avassaladoras, mas fico suspensa do ecran (e dos relatos) de quem o faz.

Ao longo dos anos entrevistei muitos atletas, alguns campeões olímpicos e paralímpicos de todas as idades e categorias. Todos eles me marcaram pela paixão, pela entrega, pelo espírito de sacrifício e pela capacidade de lidar com a frustração. Conversar com pessoas que vivem em permanente atitude de superação é, em si mesmo, uma lição. Tão importantes como as conquistas, são as derrotas que sofrem e a forma como lidam com elas. Mais, a gestão do stress, dos medos e dos limites é sempre matéria que me interessa, pois facilmente a consigo transpor para a vida real.

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A notícia de que João de Macedo, economista e surfista, mas também empreendedor apostado em preservar as ondas e a orla costeira, foi selecionado para o circuito mundial mais competitivo na categoria de ondas gigantes interpelou-me e fez-me voltar um par de anos atrás, ao dia em que o entrevistei para este mesmo jornal. Voltei a ouvir a entrevista para recordar o que o faz correr. Ou melhor, surfar. Ou, para ser mais precisa, arriscar a vida.

Ouvi o que já me tinha dito, mas desta vez dei comigo a arrumar a informação em dois patamares: um, estritamente competitivo; outro mais abrangente por, de certa forma, revelar a natureza humana. Talvez o facto de saber que João de Macedo é um orador motivacional muito ouvido tenha influenciado a minha escuta, pois o ser capaz de falar da sua experiência para plateias e audiências que nada têm a ver com o surf dá-lhe uma capacidade narrativa que inspira e transforma. A sua história faz eco nas histórias de cada um e mesmo não tendo nada a ver com a sua experiência, acabamos por nos identificar com parte da sua realidade interior, de forma especial com a maneira como treina para enfrentar as ondas e não se deixar abater. Aquilo que para ele é literal, e acontece no mar alto, a nós serve-nos de metáfora uma vez que também ninguém escapa à grande máquina centrifugadora que é, muitas vezes, a própria vida. Muitos também atravessam realidades adversas em ‘apneia’ ou a sentirem-se abalroados por ondas tsunâmicas.

“Todos nós temos medos” diz João de Macedo, “o surf de ondas gigantes é um caso limite onde estamos expostos a esses mesmos medos”. Fala dos seus e da maneira como os vence. Com muito trabalho e sem a tentação de lhes escapar ou de os evitar. Tal como os problemas, também os medos aumentam quando lhes voltamos as costas. No mar, perante a imensidão do oceano, esses medos têm que ser atravessados. E geridos. Integrados e transformados. Como? Com muito treino e muito nervo. “Temos pesadelos e ânsias, mas se fizermos o trabalho de casa e nos prepararmos, somos capazes de enfrentar os medos”. Mais, de os superar e de nos transcender.

Sempre que ‘malucos’ como o João de Macedo ou o Garrett McNamara vencem a fúria dos oceanos e surfam as maiores de todas as ondas, o mundo inteiro pára e aplaude, mas na verdade, mais dia, menos dia, todos seremos chamados a atravessar intensos turbilhões, tempestades horríveis e ventos contrários e, por isso mesmo, vale a pena aprender com os campeões. Se fizermos o trabalho de casa, somos capazes de tudo, dizem eles. Como, perguntamos nós?

Treinar a gestão do stress e dos medos não está só ao alcance dos atletas de alta competição e dos surfistas das ondas mais altas. É possível e desejável fazê-lo mesmo sem entrar em campeonato nenhum. A vida encarrega-se de provocar as suas tormentas e, fatalmente, todos passamos por elas. Há quem diga que o ideal para gerir medos e evitar pânicos que paralisam e podem afogar é identificar um “board of advisors” pessoal, um círculo de pessoas a quem possamos recorrer com facilidade em momentos-chave.

Para quem opta por este caminho, o treino inclui naturalmente boas conversas e encontros estratégicos com essas pessoas por serem motivadoras e resgatadoras da confiança. Não sei se os atletas olímpicos também investem em conversas destas ou se apostam exclusivamente no treino físico, mas diria que é uma combinação de vários mundos. Os medos e o stress não passam só com corridas e musculação, também precisam de ser postos em perspectiva, e isso faz-se com a ajuda dos outros. Podem ser especialistas, treinadores, amigos ou pares de referência, mas têm que ser outras pessoas. Os medos, as ânsias, as angústias e os pesadelos não passam se estivermos sempre sozinhos. Muito pelo contrário, adensam-se e tomam proporções desmedidas. Mais assustadoras que a onda mais alta, diria eu.

Na entrevista que revi, João de Macedo conta o que faz quando está exposto a situações de ‘mar limite’ e explica o conceito de ‘surf progressivo’. Mais uma vez dei comigo a transpor tudo para a vida quotidiana. Deu-me para aqui, nem sei explicar a razão. E percebi melhor os ‘aéreos’, as ‘esquerdas’ e as ‘direitas’ que tantas vezes somos obrigados a treinar (e a antecipar!) pois no surf como na vida, tudo se joga no equilíbrio e na confiança. Mais o trabalho, sempre o trabalho árduo e persistente com os outros e connosco próprios, quero dizer.

Em resumo, quando um dos nossos é selecionado para um campeonato deste calibre e está entre os grandes, isso provoca em nós um profundo orgulho, mas também uma enorme vontade de preceber como é que certas coisas se fazem. É o caso, com o João de Macedo.