Os tempos inclinam a uma certa melancolia. À medida em que aquilo a que se chama experiência nos torna conscientes de como ao longo de uma vida, que não precisa sequer de ser particularmente longa, os critérios sociais do aceitável e do inaceitável mudam constantemente e por vezes de forma imprevisível, sobrevém uma espécie de tristeza face ao espectáculo das crenças entusiásticas, unas e indivisas, que tomam cada ideia posta em circulação como “progressista” como indisputavelmente verdadeira, o que quer que isso queira significar, e definitivamente justa. E é difícil escapar neste contexto ao topos clássico do pensamento ocidental que opõe o riso de Demócrito às lágrimas de Heraclito, a irrisão perante a loucura humana ao desespero para com ela. No fundo, a escolha é entre a vertiginosa prosa de Montaigne e a não menos extraordinária poesia de Sá de Miranda.
Rindo ou chorando, a surpresa que origina a nossa reacção é a surpresa – e, por mais habituados que estejamos a estas situações, há sempre uma surpresa de que não nos conseguimos livrar – face a uma ausência total de distância face às crenças, uma identificação à prova de bala com estas, que vai muito para além do banal e desejável comprometimento com elas. Tudo, como resultado de um desmesurado investimento passional, se rigidifica e adquire uma alucinada consistência petrificada. Tomemos, por exemplo, as actuais querelas sobre o “género”. Uma pessoa fica com saudades dos tempos de Freud. Por mais reservas que nos inspirem os méritos terapêuticos da psicanálise, Freud, lido como filósofo e não como “cientista”, desenvolveu na sua metapsicologia uma descrição admirável da complexidade da vida psíquica que se encontra nos antípodas do simplismo e do dogmatismo contemporâneos, que do primeiro ao último momento vivem de uma interpretação pretensamente sofisticada mas que, no fundo, nada mais faz do que copiar, de forma ingénua, ignorante e com recurso a categorizações selvagens, alguns rudimentos de uma visão pobre e caricatural das ciências. Tal visão, de resto, é igualmente patente em muitos dos argumentos usados nas discussões sobre o “aquecimento global”. (Em ambos os casos, permito-me sublinhar, a minha crítica incide sobre o estilo da argumentação, não sobre os seus respectivos objectos, que são obviamente complexos e importantes – nem perderia o meu latim com isto se não fosse esse o caso. E certamente que não estou a fazer a apologia de um estado de perplexidade permanente, do qual resultaria uma perfeita inacção – censuro apenas a total ausência de distância por relação às crenças próprias.)
Por mais voltas que se dê, chega-se fatalmente àquilo que Montaigne (sempre ele) chamava “pensamento a crédito”, que sobrevive e se reproduz graças à extraordinária facilidade de acreditar (irmã da dificuldade em dizer “não”) que habita os seres humanos. O que irrita mais na cobertura que os media fazem dos acontecimentos locais e mundiais, não é tanto o seu esquerdismo atávico, nem sequer as doses cavalares de má-fé que eles exibem, mas a completa dependência do tal “pensamento a crédito” e a extraordinária estupidez (vale a pena utilizar a palavra) que é o seu assento natural, justificando os perpétuos esguichos de virtude. Dessa estupidez resulta um obscurantismo, disfarçado com fardas de “ciência”, cuja natureza profundamente inquisitorial fura os olhos do mais distraído dos seres humanos cujo espírito não tenha sido ainda devidamente anestesiado pelo jargão contemporâneo. A infantilidade e o fanatismo reinam absolutamente e estendem o seu manto por sobre toda a conversa social. E não me refiro apenas a praticamente tudo o que sai da boca do BE e dessa coisa esquisita chamada PAN. O manto cobre também o PS e uma vasta parte do que extravagantemente entre nós se chama “direita”.
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