Na última cerimónia de entrega dos Emmy, em Setembro, Viola Davis começou o seu discurso de agradecimento citando a abolicionista Harriet Tubman (1822-1913). «Na minha mente, vejo uma linha. E para além dessa linha, vejo campos verdejantes e flores encantadoras, e belas mulheres brancas com os seus braços estendidos na minha direcção para além dessa linha, mas não pareço saber como conseguir chegar-lhes. Não pareço conseguir ultrapassar essa linha.»
Foi a sexagésima-sétima vez que o prémio foi atribuído, e a primeira que uma actriz negra o recebeu. «Não se podem ganhar prémios por papéis que não existem», acrescentaria, aludindo aos preconceitos da indústria. Aos argumentistas a quem se deveu a sua participação em Como Defender um Assassino, pela qual acabara de receber o prémio de melhor actriz dramática, agradeceu reinventarem o que significa «ser bonita, ser a protagonista, ser sexy, ser negra». A única coisa que separa uma mulher negra de qualquer outra pessoa, afirmou, é «a oportunidade». ‘Oportunidade’ é de facto o melhor termo para definir o que separa uma mulher negra de muitas outras pessoas, e sobretudo o que as separa de uma mulher negra que viva na Europa e na América. Esta distinção não se restringe, no entanto, a desigualdades socioeconómicas, que, como tantas outras pessoas, muitas vezes tem de ultrapassar; nem reside apenas na esfera pública.
James Baldwin dedicou um ensaio, em 1953, a uma estadia numa aldeia dos Alpes onde tudo indicava nunca haver estado um homem negro. O espanto sincero dos aldeões e as suas maneiras receosamente corteses deram-lhe a ver que o recebiam como uma visão assombrosa. Talvez a reacção à chegada de Baldwin se pareça com a de qualquer um de nós quando nos conhecemos uns aos outros, sendo a cor da sua pele não mais do que a explicação particular de um estranhamento inerente a qualquer primeiro encontro. Nenhuma dose de experiência nos protege contra a surpresa. Qualquer que seja porém o seu aspecto, a enésima pessoa com que nos cruzamos pela primeira vez nunca deixa de ser também um velho conhecido. Tudo quanto julgávamos saber em geral sobre os outros deforma o modo como encaramos este estranho, levando muitas vezes a que não se queira vê-lo como é. Aquilo que é visto como estranho no estranho da aldeia — o aspecto de um corpo e a história desse corpo — não é um sonho de que se desperte. Se sou eu a estranha da aldeia, sou-o na medida em que não posso acordar do meu próprio corpo, da cor da minha pele e do facto de ser mulher.
A aldeia nos Alpes de uma mulher negra na Europa é a carteira da escola, o balneário do ginásio, o café da esquina, a mesa do jantar: os lugares por onde o seu corpo circula. É preciso deslocar a atenção para a esfera discreta das relações pessoais e dos círculos próximos para dar com um horizonte de oportunidades omitidas. São aí constantemente lembradas de serem a negra da turma; de terem um cabelo esquisito, uma beleza exótica; de não as quererem namorar excepto para fazer alarde disso; de não se atreverem a admiti-lo a si mesmas se se apaixonaram por um branco; são aí motivadas a sentirem-se escuras demais, o que ecoa em não encontrarem mulheres com o seu aspecto na televisão, na publicidade, no cinema, no parlamento.
As «belas mulheres» para lá da linha não são, para si, os distantes aldeões alpinos do ensaio de Baldwin. São antes caras conhecidas para quem a condição de as admitirem nas suas vidas é frequentemente a de não admitirem que são como são. Tornarem-se mulheres é, assim, para muitas de nós, indissociável de uma história de aversão à cor da pele — uma história que não devemos ignorar, sob o risco de diluir o que existe de heróico e colectivo na sua superação. E também então a palavra-chave será ‘oportunidade’: a oportunidade de reconhecimento. Falar em ‘oportunidade’ não acarreta uma desaconselhável submissão a outros. Antes, sublinha a maneira como não depende apenas de cada um tornar-se a pessoa que é. Ao serem-lhes negadas oportunidades de reconhecimento, é-lhes negada uma história pessoal em que teriam sido estimadas e amadas enquanto quem são, tal como são.
Pergunto-me, todavia, pensando nas mulheres negras da minha vida, se posso falar nelas como parte de um mesmo conjunto. Que têm em comum a jovem empregada do café da livraria que frequento, cujo namorado a espera no fim do turno como uma carta fora do baralho; a adolescente de tranças até ao meio das costas, pontas tingidas de verde, que se cruza comigo na passadeira? Que têm em comum as activistas e as criativas do Instagram e a senhora doce que nunca conheceu a mãe, sofre das costas e lava janelas? Que têm em comum para além de serem portuguesas? Serão realmente estranhas na aldeia se ninguém vira a cabeça para as ver passar — não serei eu quem vira a cabeça à sua passagem?
Será adequado falar de uma ‘mulher negra’, ou incorro no risco de sacrificar a individualidade de cada uma? Não armo desse modo a minha venda na aldeia e vou a correr buscar os óculos para as ver melhor, quando cruzam a estrada escorregando na neve? Como cingir o que as morde, e o que existe de singular na mordedura? De que forma arriscar um plural sobre o que morde cada uma? Como ser fiel ao que se passa dentro delas e impedir o que digo sobre isso de ser a poalha de uma retórica? Será que, para não fazer do que escrevo a minha venda perdida nos Alpes, tenho de reconhecer que nada há de comum a todas elas, que nada as distingue? E o que terei, então, reconhecido?
Vejo-me sem querer a aldeã espantada, apontando-as quando passam, manchando a graça dos seus dias. Quem julgo que sou para me atrever no que sentem? Quem me disse que sei do coração de quem está comigo do lado de cá da linha, e quem foi que me disse que quem está do lado de cá da linha está do lado de cá da linha? Quem me convenceu, afinal, de que conheço as mulheres negras da minha vida apenas porque nos parecemos? Nada do que possa dizer sobre elas é mais certo ou mais justo por eu ser uma delas. Não é certo que aquilo de que não podemos despertar — este corpo, esta pele, este cabelo — nos valha quando tentamos compreender, respeitar e falar uns pelos outros. Pudesse eu renunciar a fazer conjecturas sobre aqueles com quem me pareço; permanecer em silêncio quanto ao que vai dentro daqueles de quem me assemelho; admitir que talvez saiba ainda menos sobre aquilo de que estou próxima do que sobre o que me é distante; abster-me de falar sobre os outros, e sobre mim.
Comum a muitas mulheres negras na Europa é não conseguirem cruzar a linha que as separa das pessoas junto das quais se vão tornando mulheres, e com quem partilham a sua vida. Do outro lado da linha, não estão os estranhos. Está a vizinha do lado, a amiga leal, o colega de todos os dias, a professora daquele tempo, o patrão de há muito, o impossível marido, o cunhado do costume: estou eu e outras pessoas com quem se parecem, e talvez também elas. O que significa ao certo ‘parecer’ quando falamos uns dos outros? Como estimar e amar qualquer pessoa, estimar e amar uma mulher negra depende de estimarmos e amarmos aquilo que ela não pode deixar de ser. Quando esta oportunidade nos é negada, e por mais privilégios que tenhamos, não conseguimos fazer-nos mulheres senão como parte de uma minoria. Somos então a estranha da aldeia na nossa aldeia, dentro de nós.
Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda e é doutorada em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa. Publicou este ano o romance “Esse Cabelo” (Teorema-Leya).