A saúde foi considerada pelo atual governo como uma das prioridades da presente legislatura. Da leitura do relatório do orçamento de estado para 2020, além do reforço da dotação orçamental em 942 milhões de euros, ficam uma série de ideias soltas que poderão enquadrar-se numa lógica de criação de valor em saúde. Parece importante decifrar os aspetos críticos para que a implementação das medidas contribua para melhores resultados em saúde.

Melhorar a eficiência das unidades funcionais de cuidados de saúde primários

A medida proposta passa por aumentar o número de técnicos superiores de saúde, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, assistentes técnicos e assistentes operacionais. Para que a medida resulte é necessário analisar as necessidades da população, dividindo-a em grupos com necessidades específicas respeitantes a cuidados de saúde (ex: grávidas, idosos, pessoas com risco elevado de doença, etc.). Para cada grupo devem ser definidas necessidades expectáveis e mapear os processos de cuidados de saúde ao nível da prevenção, do diagnóstico e tratamento de primeira linha. Com base nisso, vamos certamente concluir que existem uma série de tarefas hoje desempenhadas por médicos ou, até não desempenhadas por ninguém, que necessitarão de um incremento da força de trabalho de profissionais não-médicos. Aqui se enquadra também o reforço anunciado de cuidados de psicologia e nutrição em cada agrupamento de centros de saúde (ACES) e a criação de 10 equipas de saúde mental comunitárias nas cinco administrações regionais de saúde. Poderá fazer sentido, criar equipas multidisciplinares, específicas para os vários grupos de pessoas acima referidos. Um aspeto crítico, a não esquecer, será a integração de cuidados a prestar. Ou seja, deve ser da responsabilidade de quem segue um determinado doente, a articulação com os restantes níveis de cuidados – hospitalares, continuados ou paliativos. Adicionalmente deverá assegurar-se uma liderança eficaz de tais equipas.

Cuidados Continuados e Cuidados Paliativos

No âmbito dos cuidados continuados e cuidados paliativos, está prevista a contratação de mais camas de internamento, criação de unidades de dia e promoção de autonomia, assim como equipas comunitárias de suporte em cuidados paliativos. Deduz-se que estas medidas estarão enquadradas no mapeamento do processo de cuidados de saúde dos grupos de pessoas com essas necessidades. Para além dos recursos em áreas específicas, é essencial a coordenação dos cuidados de saúde para um determinado doente. Também a este nível, é necessário garantir o tipo de profissionais adequados às tarefas a executar.

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Urgências

O grande desafio dos serviços de urgência é o reflexo do mau funcionamento dos restantes níveis de cuidados. Por essa razão, para além do anunciado reforço do modelo de organização de urgências metropolitanas, regionais e institucionais, é fundamental, garantir a satisfação das necessidades das pessoas no que respeita aos vários níveis de cuidados de saúde. Se aumentasse a disponibilidade de consultas abertas (disponíveis sem marcação) nos cuidados primários, se os vários grupos populacionais tivessem mais acompanhamento e cuidados preventivos (nomeadamente por profissionais de saúde não médicos) de acordo com as suas necessidades específicas, se ao nível do hospital fosse feito um melhor acompanhamento pós-alta, se melhorassem as condições e os cuidados prestados ao nível dos cuidados continuados, provavelmente mais de 50% das pessoas deixariam de ter necessidade de ir a um serviço de urgência.

Centros de Responsabilidade Integrados

Por fim, o relançamento de Centros de Responsabilidade Integrados (CRIs) nos hospitais é o landmark dos cuidados de saúde baseados em valor (“Value-based Healthcare”). Traduzindo, são unidades de cuidados de saúde, formadas dentro dos hospitais, focadas no tratamento de condições médicas específicas ou grupos de condições médicas. Exemplos já são nalguns casos  e podem ser no futuro: obesidade, diabetes mellitus, cardiopatias congénitas, cefaleias, cancro do pulmão, etc. A primeira tarefa deverá ser, mais uma vez, o mapeamento do processo de cuidados de saúde dos doentes com estas condições médicas. Esse exercício servirá de base à identificação dos profissionais de saúde da equipa multidisciplinar pressuposta no modelo. Para além disso, a legislação sobre esta matéria determina a criação de medidas de resultados em saúde e ainda um apuramento de custos específicos para tratamento dos doentes dos CRIs. Com uma denominação diferente, este é o modelo de Unidades de Cuidados Integrados que tanto se fala no modelo de “value-based healthcare” de Michael Porter! Um aspecto crítico parece ser a definição de critérios para a formação de CRIs de forma a garantir alguma homogeneidade na prestação de cuidados de saúde no SNS, a definição de parâmetros de avaliação de resultados em saúde e custeio específicos das várias condições médicas para garantir a comparabilidade entre os vários CRIs para a mesma condição médica. A análise de custeio de CRIs para condições médicas específicas poderá ainda servir para definição de pagamentos compreensívos de base para contratualização de cuidados de saúde entre o Ministério da Saúde, os Hospitais EPE e os seus CRIs. Os atos médicos prestados no âmbito de CRI são já majorados no âmbito da contratualização entre o Ministério da Saúde (ACSS) e os Hospitais, como medida de incentivo. Está prevista a possibilidade de os próprios profissionais envolvidos terem incentivos específicos. Espera-se que, embora possa existir uma lógica distributiva de incentivos a profissionais, que o primeiro nível de atribuição dos mesmos seja ao CRI, como garantia de que todos se sentem, acima de tudo, unidos por uma mesma missão e propósito no seu trabalho.

Missão, propósito e Humanização

Por fim, é importante não esquecer que, apenas equipas com uma missão e um propósito bem definidos, que reflitam as preocupações dos vários intervenientes no sistema — profissionais, utentes, cuidadores, instituição e ministério da saúde, assegurarão a implementação destas medidas e outras que contribuam efetivamente para a melhoria do SNS. A necessidade de humanização dos cuidados de saúde, que começou a ser valorizada no final da última legislatura, é um pilar básico da sustentabilidade e do acréscimo de valor para o sistema. Por essa razão, são fundamentais medidas que garantam o respeito e o bem-estar ao nível dos três eixos de humanização de cuidados de saúde: doentes, cuidadores e profissionais.