Instalou-se uma ideia em alguns líderes políticos de que o país é governável com governos minoritários sem acordos de governação. As dificuldades que o governo enfrenta nas negociações para aprovar este Orçamento de Estado, passado apenas um ano de estar em funções, são ilustrativas de como é uma ideia perniciosa. Ao contrário da esmagadora maioria das democracias europeias, não existe em Portugal uma cultura de negociação e de compromisso que sustente maiorias parlamentares.

É bom que se perceba o que se está a passar com os Orçamentos de Estado, que se estão a tornar, a cada ano que passa, mais complexos quer por responsabilidade dos governos, que em medidas preventivas introduzem “normas cavaleiras” que não deveriam estar nos OE, quer porque os partidos querem fazer a diferença e fazem cada vez mais propostas de alteração, sobretudo com governos minoritários. O número médio de artigos dos Orçamentos de Estado, da IX legislatura foi de 76 e tem vindo sempre a subir sendo de 430 no OE de 2020. É assustadora a evolução das propostas de alteração ao OE que nos últimos orçamentos foi de 212 (2016), 433 (2017), 643 (2018), 908 (2019), tendo sido de cerca de 1300 em 2020. O problema não está apenas no número de propostas de alteração, que torna já de si o processo quase ingerível pelos serviços parlamentares e incompreensível para os partidos que por vezes nem sabem o que estão a votar na especialidade. Está também na imprevisibilidade das votações, não havendo nem maioria política de um partido nem acordos maioritários. Tendo já apreciado genericamente o Orçamento de Estado aqui, interessa-me a questão mais vasta que é o contexto político das negociações e votação.

António Costa fez a sua opção estratégica e reiterou-a ainda esta sexta-feira em entrevista. A sua opção foi fazer passar o Orçamento à esquerda e não depender em particular do PSD e CDS. O problema é que se o PS está próximo dos partidos de esquerda nalgumas medidas de carácter social e de direitos individuais, está muito mais próximo do PSD em matérias económicas, laborais, para já não falar em matérias de política europeia e internacional. Fazer esta quadratura do círculo não é fácil.

Um eventual chumbo do orçamento não levaria a uma demissão do governo, mas é um cenário claramente indesejável.  Começar a executar um orçamento a duodécimos, num ano que se prevê seja de crescimento significativo da economia portuguesa, com o orçamento feito na base da maior recessão que o país teve em décadas seria completamente insano.

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A vantagem das negociações orçamentais baseadas em coligações ou em acordos, sobre as negociações sem acordos, é que há uma base de entendimento, um diálogo, um capital de confiança mútua gerado por esse acordo. Isto facilita as restantes negociações. A minha apreciação das negociações e daquilo que consta no OE2020 é que o PS fez já uma série de cedências ao BE, isto é, foi mais longe do que estava disposto a ir e ainda continuamos na incerteza se o Bloco viabilizará o OE sendo que a crispação aumentou muito nos últimos dias.

Quais as exigências do Bloco de Esquerda (Resolução Política da Mesa Nacional de 4/10)? Uma nova prestação social para famílias no limiar da pobreza, reposição das regras do subsídio de desemprego de 2010, penalizar as empresas com lucros e apoios do Estado que façam despedimentos, repor a indemnização por despedimento, bem como o período experimental de 3 meses, reforçar o SNS com 8400 profissionais (não discriminando as categorias), defende mais vagas para médicos especialistas e que o governo “ponha fim ao assalto da Lone Star sobre o Novo Banco”, o que só pode ser lido como o governo rescinda o contrato com a Lone Star.

Basta ver o Orçamento de Estado para se perceber que o governo evoluiu a sua posição para acomodar parcialmente as exigências do BE. É o caso do apoio extraordinário ao rendimento dos trabalhadores, do aumento do subsídio de desemprego, o reforço dos profissionais do SNS, as restrições aos despedimentos em grandes empresas com lucros que pretendam aceder às linhas de crédito com garantia pública. Mesmo em relação ao Novo Banco, a solução que o Bloco queria – uma injeção da restante banca direta no capital do Novo Banco – para além de ser impraticável (a banca nunca aceitaria), violaria o contrato de privatização e exigiria reabrir as negociações quer com o BCE quer com a Comissão Europeia. Porém, a solução encontrada no orçamento de estado, em que o Fundo de resolução injecta dinheiro no Novo Banco sem que o Estado faça algum empréstimo ao Fundo de Resolução, significa que neste orçamento o Estado não tem de se endividar diretamente para financiar o Fundo de Resolução, mas apenas indiretamente para financiar esta operação que agrava o défice (tendo em conta receitas e despesas) apenas em 275 milhões. Não tenho grandes dúvidas que sem a intervenção do Bloco esta injeção teria sido muito maior e tenho poucas dúvidas que a meio do ano não estejamos novamente a falar do NB (e bem precisamos). Em resumo, em todas as reivindicações feitas pelo BE, o governo fez o seu caminho e apesar de não as aceitar na totalidade, fez propostas de um claro compromisso. Sendo a desproporção entre a dimensão dos grupos parlamentares de PS e BE tão significativa até seria natural que não se ficasse a meio caminho, o que me parece o caso.

Parece-me que o BE está a ver mal a situação atual. Se capitalizasse as conquistas que já obteve em sede de proposta de OE e o viabilizasse, estaria a elas associado. Se votar contra, não só não as capitaliza em benefício próprio como dá um sinal de ingratidão e de permanente insatisfação. Na realidade não pode argumentar que o governo não fez cedências para acomodar as suas propostas, porque fez. Porém, o problema de fundo, esse é outro, e deveria levar o PS a uma reflexão. É termos, numa situação de vulnerabilidade política e económica do país, um governo minoritário sem base de sustentação parlamentar onde, nas negociações, nunca se sabe com que linhas cada partido se cose. Assim, este país não é governável.

PS. Não posso deixar de manifestar a minha solidariedade com o Dr. Vítor Caldeira com quem lidei variadas vezes, e aprendi a estimar, quando exerci funções parlamentares e fiz as audições ao Tribunal de Contas. Não, não há nenhuma boa razão para que não tenha sido reconduzido em Portugal, quando o foi no Tribunal de Contas Europeu e quando a Constituição claramente o permitia. Não é de agora, este país continua a desperdiçar os seus melhores. Lá fora brilham, cá são descartados.