“2016 e 2017 não são nem nunca poderão ser 2011”. A declaração é do Presidente da República na abertura do terceiro Fórum do Turismo. Numa só frase, Marcelo Rebelo de Sousa resumiu aquilo que se receia que nos possa acontecer. Para não repetirmos 2011, agora como tragédia, parece óbvio que o Governo vai ter de alterar a combinação de políticas, que lhe garantiu o acordo com o Bloco de Esquerda e o PCP e a subida ao poder. As ilusões chegam ao fim, mesmo que a habilidade política de António Costa consiga manter alguma ilusão.

Um dos mais interessantes aspectos da governação de António Costa é sem dúvida o poder de criar ilusões, de fazer acreditar que a “austeridade” acabou. As mensagens políticas e especialmente as ferramentas económicas usadas são extraordinárias, e umas alimentam as outras, possibilitando a repetição da frase “prometemos e cumprimos”.

Prometeu-se reduzir impostos e aumentar os rendimentos. É uma realidade. Prometeu-se e cumpriu-se, de facto. Mas quando se olha para os grandes números o que se descobre é uma interessante engenharia política. Os dados da receita fiscal de Janeiro a Agosto dão-nos uma fotografia, em números, do que se está a passar. A descida registada na receita dos impostos directos é praticamente igual à subida que se verifica na tributação indirecta (pouco mais de mil milhões de euros).

Ou seja, na economia como um todo, não existe uma descida nos impostos. Há uma alteração do perfil da tributação. O actual Governo reforçou a componente dos impostos “narcotizantes”, aqueles que nem reparamos que estamos a pagar, e regressivos.

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No limite, a política de impostos deste Governo pode estar a ser até mais injusta – no sentido que se traduzir em menos equidade – do que a do anterior Executivo. Um imposto indirecto é cego ao rendimento. Mas, argumenta-se, é preciso olhar para os impostos que estão a aumentar, o maior contributo vem do ISP e esse afecta apenas os que usam o carro. O contra-argumento: num país em que os transportes públicos servem mal ou não servem de todo os cidadãos, a probabilidade de boa parte das pessoas estarem a pagar mais impostos ou pelo menos o mesmo que anteriormente é elevada.

Se usarmos a medida mais simples de avaliar a restritividade de uma política orçamental, o saldo primário (diferença entre receitas e despesas sem os juros), também concluímos que a política orçamental de 2016 está a ser mais restritiva do que a de 2015, mesmo que seja marginalmente. O excedente primário foi da ordem dos 700 milhões de euros, até agosto, mais cerca de cem milhões de euros do que em igual período do ano anterior.

Mas como é isso possível? À medida que vamos tendo mais números percebemos que o que mudou substancialmente foi a distribuição da austeridade. A carga fiscal deve manter-se basicamente a mesma, mas com uma distribuição diferente, e o investimento público caiu significativamente, sendo esta redução a que deverá viabilizar a queda do défice público. Neste momento tudo indica que se deverá terminar o ano com um défice inferior aos 3% do PIB.

A diferença entre a mensagem e a realidade que nos é contada pelos números é um dos milagres da política de António Costa. Está criada a ilusão de que a há menos austeridade, quando na realidade estamos praticamente com o mesmo grau de aperto. Se fossemos uma grande economia sem dívida, esta receita, de ganhar confiança interna, estaria de facto a gerar uma acentuada retoma. Sendo nós uma pequena economia muito endividada, uma política de confiança sem apoio da realidade é arriscada e irrepetível.

Em 2017 o Governo não consegue repetir, pelo menos na totalidade, o que fez este ano. Poderá disfarçar parte da austeridade com mais impostos indirectos. Mas como já se percebeu, pela onda de descontentamento com o anúncio falhado de criação de um novo imposto sobre o património, a dimensão das receitas exigidas cria enormes dificuldades à construção da máscara da “não à austeridade”. E é preciso mais receita, porque não será possível continuar a apoiar a queda do défice público no corte do investimento público, por causa dos fundos comunitários.

O que se está a fazer em 2016 é sem dúvida um exercício de gestão de pura política muito interessante. Todos queríamos acreditar que era possível, cansados que estávamos dos anos difíceis da era da troika. Aceitámos as ilusões de braços abertos. Mas as ilusões não mudaram, pelo menos até agora, a realidade. Nem é previsível que a conjuntura mude por força do exterior. Mais cedo ou mais tarde teremos de nos confrontar com a política económica que nos é imposta pela dívida que acumulamos.

Os alertas já aí estão. O que disse o Presidente da República, tentando desdramatizar as diferenças entre Governo e oposição, não é muito diferente das mensagens que foram sendo transmitidas nas últimas semanas pelas agências de ‘rating’, nomeadamente pela DBRS, e pelo FMI. Estamos muito frágeis, mais frágeis agora do que há um ano. A mais pequena tempestade financeira no mundo, pode significar o encerramento das portas que nos dão acesso aos mercados financeiros internacionais.

Vale a pena ler o que escreveu o FMI, nomeadamente a entrevista do chefe da missão portuguesa Subir Lall. Há políticas simples que podem ser adoptadas para melhorar a competitividade, como por exemplo ter a coragem de actuar nos preços da energia e na protecção do emprego dos que estão instalados no mercado de trabalho. É politicamente impossível alterar as leis do trabalho, compreende-se, mas o caso da energia não se percebe.

Estamos a chegar ao fim da fase das ilusões. Porque não queremos de novo 2011.