Em 1999, Bolsonaro defendeu a suspensão da Constituição e o encerramento do Congresso, através da instauração de um regime excepcional, ou seja uma “ditadura”, para repor a ordem e assegurar a governabilidade do Brasil. O problema, explicou então Bolsonaro, era a impreparação dos representantes políticos no Congresso e a sua tendência para legislar demasiado, enfraquecendo o Estado e prejudicando a defesa dos interesses do povo brasileiro. Ele era, portanto, a solução: uma liderança forte para reerguer o país.

Não foi o único posicionamento político de Bolsonaro a desafiar o regime democrático. Mais recentemente, atirou à perseguição e ao fuzilamento de adversários políticos. Em 2008, contra Fernando Henrique Cardoso – “para o crime que ele está cometendo contra o país, sua pena deveria ser o fuzilamento”. E, em 2018, contra os dirigentes do PT – “vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre; já que gosta tanto da Venezuela, essa turma tem de ir para lá”. Mas há mais. Em 2017, afirmou que “as minorias têm que se curvar perante as maiorias”, a propósito da religiosidade do Estado brasileiro – princípio que já aplicou a vários outros temas. E, há dias, fez um ataque directo à liberdade de imprensa, ameaçando a Folha de São Paulo (o maior jornal brasileiro) com a redução de financiamento – isto, assinale-se, em retaliação ao pedido do jornal para que fossem investigadas as intimações (possivelmente orquestradas) que os seus jornalistas têm recebido.

É mau, mas não acabou. A isto pode-se ainda somar todo um conjunto de declarações racistas, xenófobas, misóginas e discriminatórias contra os homossexuais que, em conjunto, caracterizam o conflito de Bolsonaro com o pluralismo e a diversidade social numa sociedade aberta. Por exemplo, quando afirmou que “seria incapaz de amar um filho homossexual” ou quando afirmou que “não empregaria [homens e mulheres] com o mesmo salário”. A lista de exemplos é interminável.

Muitos dirão que nenhuma das declarações acima pode ser levada à letra. Mesmo que seja esse o caso, não se pode também fazer o contrário – tapar os olhos a tantas declarações ao longo de tanto tempo e fingir que são meros excessos linguísticos, uma espécie de estilo discursivo. À letra ou não, esta sequência de posições políticas de Bolsonaro caracterizam-no como um inimigo da liberdade e da democracia liberal. Ele traz de volta as críticas à fraqueza do parlamentarismo, recupera a defesa do excepcionalismo constitucional, rejeita os freios e contrapesos republicanos e ressuscita o ódio que alimenta a perseguição política. E o ponto-chave é esse: mais do que um mau candidato e, agora, possivelmente um mau presidente para o Brasil, Bolsonaro representa a rejeição dos princípios políticos do liberalismo dos séculos XIX e XX que construiu os regimes que hoje conhecemos no mundo ocidental – livres, plurais e alicerçados na representação política.

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Não me atreveria a julgar quem, no Brasil, numa situação de evidente desespero político e sem escolha decente entre Bolsonaro e Haddad, tenha preferido o primeiro – a realidade brasileira é complexa e os dois candidatos são males maiores, como bem apontou José Manuel Fernandes. Mas impressiona-me que, à distância, a candidatura de Bolsonaro tenha tido tanta adesão entre partes da direita portuguesa, como se apercebeu quem acompanhou os debates nas redes sociais. A meu ver, essa direita tropeçou nos próprios pés.

Primeiro, porque se deixou toldar pelo ódio ao PT e ao que este representa – à boa maneira da guerra total em que “os fins justificam os meios” e em que vale tudo para tirar o PT do poder. Ao fazê-lo, legitimou um político cujas críticas à democracia liberal não o distinguiriam de um comunista ortodoxo ou de um fascista. Exemplo concreto: em relação aos ataques de Bolsonaro ao Congresso brasileiro, basta recordar que a crítica à ineficácia e à inutilidade do parlamentarismo serviu de porta de entrada à defesa de regimes fortes, centrados num soberano e libertos das amarras constitucionais – e isso foi tão partilhado pela direita como pela esquerda (não por acaso, o ex-deputado comunista Miguel Tiago fez recentemente uma crítica nesses termos ao parlamento português). Em segundo lugar, essa direita fez da adesão ao liberalismo económico do programa eleitoral de Bolsonaro – que nessa área tem ideias meritórias – um argumento para desvalorizar as restantes posições do brasileiro. Mas aí há um problema de raiz: a liberdade económica não é forçosamente liberdade política, e uma sem a outra vale pouco. Se quiserem, chamem-lhe outra coisa, mas não lhe chamem liberalismo.

Nos próximos tempos, haverá muita gente a rasgar vestes e a anunciar o fim dos tempos no Brasil – e, claro, muita gente a enganar-se nas suas profecias apocalípticas. Da minha parte, interessa-me mais olhar para aqui: espero que a crise intelectual e de representação política no centro-direita português não se deixe vencer por réplicas do discurso do presidente eleito brasileiro. É que Bolsonaro não é um democrata. E, sim, isso não é tudo – mas, sem isso, não há nada.