Em Portugal não é comum consolarmos alguém aflito com a frase “vou orar por ti”. Provavelmente conhecemos a ideia dos “thoughts and prayers” que vemos os americanos dispensarem publicamente quando desgraças acontecem mas, mesmo que tentássemos a tradução mais óbvia e católica, “vou rezar por ti”, continua a soar estranho. Creio que a palavra rezar é da mesma família da palavra prece, que é equivalente à inglesa “prayer”. O certo é que “vou orar por ti” soa mais natural nos países de língua inglesa, geralmente de maioria Protestante. Para um Protestante em Portugal, como eu, saímos do berço dizendo “Mamã”, “Papá”, e “vou orar por ti”.

À expressão “orar” encostamos também o discurso espontâneo, e não a rigidez que associamos à reza. Logo, orar por alguém é abrir a boca e pedir a Deus o que quer que atravesse o nosso pensamento. Os Protestantes são criaturas com real excesso de à vontade com a divindade. Quando oramos, é logo: quero isto, aquilo e aqueloutro (lembro-me, por exemplo, de ter seis anos e orar à noite pedindo que Deus me fizesse namorar com uma miúda por quem estava apaixonado—Deus nunca respondeu a essa oração, o que mostra a pedagogia de confiar em alguém que não nos dá a garantia de recebermos o que lhe pedimos repetidamente). Lata é coisa que não nos falta. Por isso, tudo pode ser transferível para a oração. Literalmente tudo. Consegues pensar numa determinada coisa? Então consegues orar por essa mesma coisa. O Protestantismo é, nesse sentido, o Reino da simplicidade.

Hoje também acontecem reacções hostis quando pessoas de responsabilidade política recorrem, diante de uma tragédia, aos “thoughts and prayers”. Acho que compreendo. Para todos os efeitos, recorrer à oração é assumir a nossa incapacidade. Afinal, quando digo que vou orar por alguém, eu não garanto que posso fazer alguma coisa pela pessoa por quem intercedo. Quando oro, a garantia é zero (como expliquei no caso da miúda por quem estava apaixonado aos seis anos). Quando oro por alguém, assumo que vou fazer o que posso, que é orar, para que alguém além de mim possa fazer o que não tenho capacidade para fazer. Quando oro, terceirizo o poder que assumo não ter. Orar é sempre uma humilhação. A pessoa de oração é alguém treinado em assumir a sua incompetência.

Se se espera que quem tem responsabilidades políticas possa fazer alguma coisa com o poder que lhe foi dado, é natural que odiemos que essa pessoa responda na linguagem da oração. A alguém de quem esperamos competência fica mal ouvir um discurso de reconhecimento da sua ausência através do uso da oração. E a oração, sendo a tal rendição de alguém à sua impotência através da invocação de um poder superior, poder esse que nem sequer é consensual que realmente exista, é um corpo estranho no nosso decidido cultivo da política como a resposta às nossas maiores necessidades. Novamente: oração parece não combinar com a verdadeira acção que se impõe.

Levo mais de quatro décadas de oração e, portanto, reconhecimento recorrente da minha incompetência. Sou um falhado encartado, como crente em Deus. Passo para as mãos de Deus não somente os casos difíceis mas até os outros, em que pode parecer que trataria do assunto com um pé atrás das costas. Sem oração, sem terceirizar o poder que assumo não ter, não tenho nada para mostrar. Ou seja, sem oração, a incompetência que nela já assumo, brilha ainda mais forte. Sem delegar a Deus as responsabilidades que geralmente as pessoas esperam que assuma, sou um irresponsável ainda maior. Se não pedir a Deus que me ajude a fazer o que me pedem para fazer eu, nem eu faço e mais dificilmente faz ele. Orar é assumir que a nossa especialidade é estorvar.

Estes cinco parágrafos prefaciam então um último que serve para pedir a todos os leitores para orarem pela Nice Ferreira. A Nice é uma diaconisa da Igreja da Lapa que se magoou seriamente numa queda na semana passada. Ela precisa dos médicos que estão a cuidar dela no Hospital em São Miguel, nos Açores; ela precisa do seu marido, o Tiago, que tem sido um homem a sério; ela precisa da paz para as meninas deles, a Raquel e a Joana, e para toda a restante família. Mas, acima de tudo, ela precisa de um poder que vá além da soma de toda a competência e coração desta gente toda que trata dela e a ama. Esse poder, que nos humilha tanto por ir além de toda a capacidade que temos de resolver os nosso problemas, a existir só pode existir em Deus. É a ele a quem oramos em nome de Jesus pela Nice. Amém.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR